Duplo Espaço: o atelier de Manuel San Payo
Laura Sequeira Falé gosta de ateliers e mostra-os no blogue Duplo Espaço. Desta vez, visitou o atelier de Manuel San Payo
Fui encontrar-me com o Manuel San Payo (Lisboa, 1958) à porta da Galeria Monumental, em Lisboa. É o dono deste espaço de exposições, é professor de desenho na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), tem um pequeno atelier no mesmo edifício da galeria e vive num dos andares do prédio.
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Fui encontrar-me com o Manuel San Payo (Lisboa, 1958) à porta da Galeria Monumental, em Lisboa. É o dono deste espaço de exposições, é professor de desenho na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), tem um pequeno atelier no mesmo edifício da galeria e vive num dos andares do prédio.
Entrámos pela portinha do atelier ao lado da porta da galeria, que revelou uma sala rectangular, com uma parede forrada a estantes com livros, mesas desarrumadas, pinturas, desenhos e objectos variados. Só havia espaço para andarmos em linha recta até à porta do fundo que se abre para a Monumental, mas mesmo assim detivemo-nos ali algum tempo.
É entusiasmante falar com o Manuel, que é afável e conversa muito sem maçar. É bastante enérgico e parece que está sempre desperto, com os olhos muito abertos, ao mesmo tempo que é paciente. Qualquer sítio para onde olhe é um estímulo para falar de determinado assunto e, muitas vezes, os temas atropelam-se na conversa porque há tanto para dizer. É espantoso ver como é rápido e fluído a falar, conversando como quem desmonta matrioskas. Parecia que estava perante uma pessoa com dois pares de olhos, uns para dentro e outros para fora, uns melancólicos e pesados, outros leves e cheios de vivacidade.
Costumo ver no seu Instagram e no seu Facebook as fotografias que tira ao diário gráfico e aos desenhos que faz no iPad. Quando falei nos desenhos digitais, disse-me que gostava muito de desenhar assim, que era fácil, já estava habituado e tinha uma série de aplicações instaladas que faziam mais ou menos a mesma coisa. Num rápido "queres ver?", e sem esperar pela minha resposta, jogou as mãos aos bolsos do casaco para de lá saírem agarradas aos dedos umas seis ou sete canetas e lápis como se fossem lanças. "Olha, não encontro a caneta do iPad! Deixa ver aqui..." e no outro bolso outras tantas.
Os diários gráficos são também aquilo a que se dedica diariamente. A sua tese de doutoramento recebeu o título O desenho em viagem: álbum, caderno ou diário gráfico, o álbum de Domingos António Sequeira, onde o Manuel afirma que se quer o álbum de artista como uma presença constante e que o diário gráfico se torna num suporte cúmplice e coincidente com o quotidiano. Não é preciso segui-lo há muito tempo para perceber que as suas acções subscrevem esta ideia, já que praticamente todos os dias fotografa aquilo que desenha e "posta" sob o título "caro diário".
Há um diário gráfico pelo qual tem estima especial. O seu avô, vindo da aldeia de Sampaio, no Minho, emigrou com a mulher e as duas filhas a bordo de um navio transatlântico. Alterou o seu apelido para o nome da terra de onde vinha, distorcendo a ortografia para San Payo, e durante o tempo em que esteve embarcado foi desenhando no seu próprio diário. Não é que fosse um diário especialmente bem desenhado, mas o avô tinha interesses variados e o desenho era um deles.
Um atelier que não existe
Saímos da pequena sala rectangular e eu percebi que este atelier não tinha espaço físico. No caso do Manuel, o atelier não existe porque qualquer lugar é bom para desenhar ou para fazer experiências. Aquela sala anexa à galeria onde havíamos estado era só um local de passagem e de consulta, não era um sítio para se estar, muito menos para se ficar a trabalhar.
Na parte da Galeria Monumental aberta ao público, só o rés-de-chão do edifício faz jus ao nome. O edifício foi herdado, alguns andares estão arrendados a particulares, mas, à medida que vamos subindo as escadas, passámos por um fantástico andar com um pé direito invejável, agora em remodelações para se transformar em residências artísticas e ateliers temporários talvez ainda este ano. O Manuel quer dar outra vida àquele espaço e tem em mente um plano em grande. Gostaria que artistas portugueses e estrangeiros pudessem passar ali temporadas, no edifício privilegiado que se localiza no próprio Largo Mártires da Pátria, a dois passos de tudo.
Conforme ia passando pelo meio dos materiais de construção e dos pedreiros, enquanto me surpreendia que ainda houvesse mais uma porta depois daquelas todas que tínhamos acabado de abrir, o Manuel falou-me da estranheza permanente que é ser artista e galerista em simultâneo. No início, há trinta anos, aquele era um espaço mais ou menos degradado onde expôs com alguns amigos depois de ter terminado a licenciatura em Pintura nas Belas Artes. Entretanto foi-se transformando em galeria e com essa transformação veio o conflito interno acerca do assunto. É como se fosse Deus e Diabo ao mesmo tempo, sem saber muito bem a qual corresponde cada um.
Os artistas não se deviam preocupar com as vendas do seu trabalho — outra pessoa devia conseguir promovê-los e vendê-los e os artistas só se deviam concentrar na produção. O tempo do trabalho plástico é diferente do tempo do mercado da arte, mas realisticamente o artista tem que gerir ambas as coisas. Não é fácil porque implica focos diferentes e frustrações acumuladas.
É também para mostrar e vender que as galerias existem. Apesar da Monumental estar bem posicionada no bairro, as pessoas dali não entram porta adentro, nem só para ver. As inaugurações estão compostas, mas parece que as pessoas têm medo de entrar na galeria, apesar da amplitude da sala de exposições e do à vontade com que somos tratados. É também por isso que deseja que o edifício se torne mais do que uma galeria porque se tiver outro tipo de movimento acabará por atrair pessoas que neste momento ainda não entram no espaço.
O Manuel disse-me repetidas vezes que adora ensinar, que se sente muito estimulado pelos alunos e também gosta de estimulá-los. Por vezes aparecem mentes muito frescas e é também com eles que tem ideias. No momento desta visita estava a "fazer gelatinas". Nem tive tempo de perguntar o que era, porque sem querer já estávamos a caminho de experimentar uma. Disse-me, enquanto fazia um espacinho entre carimbos, canetas e outros materiais, que a gelatina é um excelente meio para fazer impressão sobre papel porque passa qualquer de tinta que esteja sobre ela.
Impressionou-me que conseguisse manter dois discursos em simultâneo sobre o mesmo assunto sem se perder e sem me confundir. Enquanto ia descrevendo que estava a desenvolver este trabalho com os alunos, dizia que agora punha ali um bocado de tinta, depois outra camada, e alguns alunos tinham levantado o problema de serem vegan, agora era só passar o rolo para espalhar as diferentes camadas, que a gelatina não era vegan e ele tinha que encontrar forma de fazerem o trabalho, "vamos pôr aqui uma rede que está ali na gaveta do lixo útil", "vai lá buscar ali", e passar aqui o diário gráfico para ficar com uma impressão, porque, imagina, recusam-se a utilizar gelatina se for feita de animais e o Manuel nunca tinha pensado nisso. Ao final de um minuto, duas ideias, uma impressão e um pequeno desgosto passageiro: "Epá, estas cores ficaram um bocado feias, não foi?"
Parece que falar com clareza e ensinar lhe é inato e que as ideias o assaltam em catadupa. Subimos para a sua casa, mais um andar amplo, em madeira e cheio de luz, onde ficámos a conversar durante uns minutos até nos despedirmos. No dia a seguir iria para uma feira em Espanha, para regressar dois dias depois. Chamou-me a atenção um livro ilustrado de contos do Edgar Allan Poe, que prontamente o Manuel tirou da estante, comentou sobre o óptimo ilustrador e disse: "Leva, leva, lê e depois logo me trazes de volta." Já tenho um pretexto para regressar.