O Outro Casal, a outra Helena

Somos todos voyeurs na nova exposição do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva. Nela se vê parte da obra de Helena Almeida, aquela em que o marido, o arquitecto Artur Rosa, aparece. Um casal que, na intimidade, nos faz pensar noutro(s).

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Foi há 40 anos que Artur Rosa, arquitecto e escultor, apareceu pela primeira vez na obra da mulher, a artista plástica Helena Almeida. Ele, que estava sempre lá mas por detrás da câmara fotográfica que registava aquelas performances feitas na intimidade do atelier, deixou-se ver. Em 2006 voltou a fazê-lo e dessa vez ficou. 

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Foi há 40 anos que Artur Rosa, arquitecto e escultor, apareceu pela primeira vez na obra da mulher, a artista plástica Helena Almeida. Ele, que estava sempre lá mas por detrás da câmara fotográfica que registava aquelas performances feitas na intimidade do atelier, deixou-se ver. Em 2006 voltou a fazê-lo e dessa vez ficou. 

Artur Rosa (n. 1926) entra no jogo da auto-representação a que Helena Almeida (n. 1934) nos habituou exactamente como ela quer, submetendo-se a todas as indicações de cena, à coreografia precisa e ao cenário minimal mas rigoroso que a artista constrói para os seus vídeos e fotografias. Por regra, faz questão de dizer nas raras entrevistas que dá, tudo começa no desenho, suporte primeiro das ideias que lhe servem de ponto de partida e que lhe chegam a toda a hora, de repente ou devagarinho. O desenho antes de quase tudo, portanto, no trabalho de alguém que cedo se cansou da pintura.

Entre a “primeira vez” de Artur Rosa com Ouve-me (1979), obra com oito fotografias em que ambos se olham frente-a-frente (à excepção da última), tendo pelo meio um corpo estranho (um saco semitransparente, uma vezes insuflado, outras não), e 2006, ano em que o arquitecto e escultor reaparece em O abraço, concebida para a exposição antológica que Helena Almeida inaugurou no ano seguinte, na Fundação Telefónica, em Madrid, houve um longo período.

“Nesse espaço de tempo o desenvolvimento plástico do trabalho da Helena passou pela representação do seu próprio corpo. O Artur só volta a entrar quando há uma espécie de exaustão dessa auto-representação solitária”, explica Isabel Carlos, comissária da exposição O Outro Casal, que reúne uma série de obras de Helena Almeida em que o seu marido está dos dois lados da objectiva e que até 9 de Setembro pode ser vista no Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, em Lisboa.

O Outro Casal, naturalmente, porque se trata de introduzir um outro corpo duplo – chamemos assim a esta terceira entidade que nasce de uma cumplicidade de mais de 60 anos como a de Helena Almeida e Artur Rosa – num território que pertence a Arpad Szenes e a Maria Helena Vieira da Silva, evocados numa nova exposição (Un couple) que reúne cerca de 40 pinturas, desenhos e esboços em que o pintor húngaro que durante mais de meio século partilhou a vida com a artista portuguesa se retrata com a mulher.

“Quando a Marina [Bairrão Ruivo, directora do museu da Praça das Amoreiras] me convidou a fazer aqui uma exposição da Helena Almeida, depois de já ter mostrado a Paula Rego e a Lourdes Castro, tornou-se evidente que teria de passar pelo casal e veio-me logo à ideia O abraço, essa fusão de dois corpos que é tão bonita, tão emotiva”, diz Isabel Carlos, que conhece a produção da artista em profundidade.

O abraço, obra ocomposta por sete fotografias de grande formato que pertence à colecção da galerista espanhola Helga de Alvear, é agora mostrada pela primeira vez em Portugal, ao lado de obras como Looking back (2007) e S/título (Ref.#9), de 2010, ligada a um vídeo que também faz parte de O Outro Casal

Nestas duas últimas obras – fotografia e vídeo – Helena Almeida e Artur Rosa aparecem com uma perna ligada à do outro por fios eléctricos, caminhando em sintonia e sem que consigamos ver-lhes os rostos. São fios grossos, duros, com uma presença escultórica, diz Isabel Carlos, que remetem para as obras dos anos 1970 em que a artista trabalhou com crina de cavalo. 

No vídeo, o som torna ainda mais graves as imagens – sente-se o peso dos pés a arrastarem-se no chão do atelier que pertenceu ao pai da artista, o escultor Leopoldo de Almeida; sente-se o esforço de sintonia que implica caminhar lado a lado quando se abdicou da liberdade de movimentos. 

“Os dois atados um ao outro – é a Helena que os ata, note-se, porque é dela a obra, é ela que dirige sempre – são como uma sintonia forçada e lembram-nos uma verdade universal da vida em casal: há que abdicar permanentemente de alguma coisa, há que forçar um bocadinho para que duas pessoas possam partilhar uma vida, uma história. Porque, no fundo, são sempre dois seres que podem ver a vida de maneira diferente, que nem sempre querem a mesma coisa.” Por mais que pareçam um só, como em O abraço.

Nela Helena Almeida e Artur Rosa estão sentados num banco de madeira alto, abraçados e num equilíbrio instável. De fotografia para fotografia cresce a urgência daquele abraço, como se cada corpo fosse a garantia de salvação do outro, como se de cada corpo dependesse o outro. “Também nesta obra se pode falar de auto-representação porque estes dois corpos pertencem-se.” Confundem-se e confundem-nos.

"Alguém próximo de mim"

“O espectador é sempre um voyeur na obra da Helena porque fica sempre com aquela sensação de estar a violar a intimidade e, no caso desta exposição, a intimidade de um casal.” Uma intimidade que é condição inegociável para a existência da obra e que passa pelo atelier, um espaço que é muito mais do que o lugar onde as coisas acontecem.

É assim que a artista explica por que razão é o marido a fotografá-la: “É sempre ele porque é importante que as fotografias aconteçam no lugar físico em que eu as pensei e projectei. E como tal tem de ser alguém próximo de mim.”

Nunca houve, de facto, outra pessoa por trás da câmara fotográfica ou do vídeo em décadas de carreira, sublinha a comissária. E só uma vez foi dada autorização para que alguém exterior entrasse mais demoradamente no atelier para conversar sobre o processo de trabalho. Foi Joana Ascensão, e dessa “visita” nasceu Pintura Habitada (2006), o documentário de 50 minutos que se pode ver agora no museu. Também nele é a voz de Helena Almeida que se ouve, também nele Artur Rosa prefere os bastidores.

É nesse filme que mostra os cavaletes, escadotes, mesas, bancos e vestidos com que costuma trabalhar no atelier que a vemos a folhear os seus arquivos, a recordar exposições e artigos de jornal, a conversar com o bailarino e coreógrafo João Fiadeiro, que fez uma peça a partir do seu trabalho (I am here), em que começava por dançar na escuridão. "Os nossos trabalhos são muito físicos", diz-lhe Helena Almeida ao assistir em vídeo a um momento da coreografia em que Fiadeiro lhe parece particularmente cansado, no limite.

A sua obra, afinal, também lida com os limites, reconhecerá mais à frente neste Pintura Habitada: os da auto-representação, os do corpo.

O primeiro espectador

Não há aqui nenhuma confusão em relação à autoria, nem nunca houve, sublinha Isabel Carlos. A obra é de Helena Almeida, não é produto de uma dupla. Artur Rosa tem a sua própria carreira como arquitecto, sobretudo – é o autor da estação de metro do Terreiro do Paço, em Lisboa, e da escultura que sai pela janela no átrio do Grande Auditório da Gulbenkian, por exemplo. É um “cúmplice”, costuma dizer ela. Ou o “primeiro espectador”, diz ele.

Mais uma vez impõe-se referir a obra do outro casal, o “primeiro”, quando se trata do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva. “Nestes dois casais ambos trabalham sem necessidade de interferir na obra do outro, mas estão sempre lá. Acompanham-se, vigiam-se”, diz Marina Bairrão Ruivo, a directora do museu. “O Arpad pinta a Vieira obsessivamente ao longo da vida, mas também faz muitos registos do casal. Quando olho para estas pinturas e desenhos que o Arpad faz dos dois fundindo-se com uma mesa ou uma cadeira, não há como não pensar na obra da Helena Almeida em que ela e o Artur Rosa aparecem abraçados num banco alto.”

Se no caso de Arpad Szenes e Vieira da Silva as emoções chegam com o traço, com a pintura, com Helena Almeida e Artur Rosa elas estão, para usar a expressão feliz de Isabel Carlos, “em estado fotográfico”. 

"Há um lado muito performático nestes dois corpos que formam um só, sem conseguirmos perceber onde começa um e acaba o outro. Mas há também um lado de reinvenção de uma artista que começou a trabalhar nos anos 60 e que está longe de se acomodar ao que já fez até aqui", acrescenta a comissária, lembrando que Helena Almeida experimenta muito até chegar exactamente à imagem que quer. "Para encontrar duas fotografias faz 20. E é importante que seja Artur Rosa a ouvi-la e a seguir as suas indicações porque, para além de seu marido, é também escultor. Ele parece saber sempre onde ela quer chegar."

Dentro de dois meses Helena Almeida, que continua a trabalhar, deverá apresentar uma nova obra na galeria de Helga de Alvear, em Madrid. Isabel Carlos já fez perguntas sobre ela, mas a artista, que "não é uma mulher da palavra", foi vaga na resposta: "Tem muitas Helenas, muitas Helenas", disse.

Por onde andará desta vez Artur Rosa?