Uma “morte digna”
O debate actual tem já um efeito benéfico: quebra o tabu que impede de falar publicamente no sofrimento de milhares de pessoas que morrem “sem resgate”.
Fazendo uma lista sumária dos argumentos contra a eutanásia, eis as razões, geralmente apresentadas, para a condenar:
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Fazendo uma lista sumária dos argumentos contra a eutanásia, eis as razões, geralmente apresentadas, para a condenar:
a. Decidir morrer pela eutanásia equivale a satisfazer as nossas paixões e desejos, porque não queremos suportar o estado em que nos encontramos. Longe de nos afirmarmos “donos do nosso destino”, cedemos ao que nos esmaga. Ser livre é “resistir às provações”, aceitar o sofrimento e lutar contra a natureza.
Argumento falacioso porque a morte é um acontecimento cuja raiz biológica aniquila a vida da pessoa. Decidir morrer antes que a doença, pelo sofrimento que traz, nos retire a vida espiritual, não significa recusar ser dominado e esmagado pela natureza? Porque a dor física pode arrancar a pessoa a si própria, subjugá-la, enlouquecê-la, pulverizá-la, tornando-a totalmente prisioneira do facto biológico. Citam-se os riscos inerentes à decisão de escolher a morte assistida: que o estado terminal pode não o ser; que a lucidez e a “plena posse das faculdades” do doente nunca são correctamente avaliadas e, talvez mesmo, não existam. Argumentos que parecem decisivos e irrefutáveis. Mas que podem virar-se contra os que rejeitam a eutanásia – como avaliar a falta de lucidez do doente?
Não é em nome da liberdade que se escolhe a eutanásia, é, sim, em nome de “uma vida digna”. A liberdade, o conhecimento de si ou a lucidez – sempre relativos – são meios de aceder à dignidade que uma vida deve merecer. O princípio de autonomia do sujeito deve subordinar-se a um princípio superior, o do valor da vida. Em casos como os da eutanásia em crianças ou deficientes, por exemplo, que tantos dilemas e perigos de erros e abusos podem envolver, o conceito de “autonomia” gera imensa confusão. Se o critério for antes o de “uma vida digna” ou “o que mais força de vida traz ao sujeito”, e se a autonomia daí decorrer, compreender-se-á melhor a situação. A “autonomia”, tal como é afirmada nos debates sobre a eutanásia, tanto pelos que a condenam como pelos que a defendem, pressupõe o sujeito uno, substancialmente separado do corpo, que conserva em si, imutáveis, a vontade, a liberdade e a razão, e que de direito não é afectado pelo corpo, o que não é há muito sustentável.
b. É a “dignidade” que importa, no argumento anti-eutanásia da inviolabilidade da vida humana. Excluímo-lo do campo religioso, porque depende do princípio que afirma que a vida é um dom de Deus e que só Deus a pode retirar. Teríamos assim de abordar a questão da crença na existência de Deus. Que a vida é sagrada, todas as sociedades o afirmaram. De onde vem esse valor atribuído à vida? É possível mostrar que vem, não de uma instância transcendente (um deus), mas do seu poder criador – de cultura, de civilização, de vida, precisamente. A vida vale por si, porque é ela que faz tudo viver, porque todo o valor espiritual decorre da sua fragilidade criadora, que inflige a “morte à morte”. É da imanência da vida individual à vida que decorre o seu valor.
Decidir “morrer dignamente” implica preservar a singularidade da pessoa. Reduzir esta a uma massa de dor, a um farrapo de vida, é tirar-lhe a singularidade. É também dela que vem o carácter sagrado da vida humana.
c. Um terceiro argumento é geralmente utilizado pelos críticos da eutanásia. Deixar aos cuidados do médico e do hospital a responsabilidade pelo fim da vida, equivaleria a encarregar o Estado do destino da existência individual. Seria obrigá-lo a interferir no mais íntimo das vidas das pessoas, num gesto totalitário inadmissível. Seria, de certo modo, cercear a liberdade individual, instituindo uma espécie de pena de morte executada através do próprio acto médico – uma aberração ética, deontológica, jurídica e política.
Parece haver aqui um certo equívoco. Primeiro, não se oferece ao Estado a vida: a eutanásia não é nem deve ser obrigatória, nem deve nunca obrigar o médico (encontrar-se-á uma solução para o dilema jurídico aqui implícito). Em segundo lugar, só deve ser tida em conta, em princípio, depois de esgotados todos os recursos oferecidos pelos cuidados paliativos, que devem estar universalmente disponíveis. Mas não esqueçamos que o direito à morte digna não depende dos cuidados paliativos.
A legalização da eutanásia deverá permitir integrar o doente terminal – que morre cada vez mais isolado – na sociedade. Saber que há uma lei e um espaço institucional que o acolhe, se ele decide morrer, é ajudá-lo a reapropriar-se da sua vida, reatando o laço com a comunidade. A legislação sobre a eutanásia deverá contemplar – com a cautela e a delicadeza que merece cada caso concreto – este aspecto da “morte digna”.
O debate actual tem já um efeito benéfico: quebra o tabu que impede de falar publicamente no sofrimento de milhares de pessoas que morrem “sem resgate”. Se o seu eco ressoasse pelo espaço público, rebentaria o escândalo imenso da dor solitária, cruel, menosprezada e esquecida, daqueles que são excluídos antes mesmo de partirem. E encarar-se-ia a eutanásia de outra maneira.