É preciso fazer um desenho? É
João Fazenda desenha todos os dias e há muito tempo. Diz que a ilustração é uma imagem que está em permanente diálogo com qualquer coisa. Estudou Pintura, tornou-se ilustrador e não consegue imaginar-se numa profissão longe da narrativa. Não tarda, começa a escrever.
Apropriámo-nos da pergunta da Festa de Ilustração de Setúbal, “é preciso fazer um desenho?”, e dirigimo-la ao ilustrador convidado desta terceira edição, João Fazenda. Resposta: “São precisos desenhos, mas também as letras, a música. Tudo aquilo que nos enriquece o entendimento do que nos rodeia, nos ajuda a relacionar e a expandir o mundo.” Mais: “O desenho é uma forma de participar no mundo.”
Sempre quis desenhar ou fazer qualquer coisa relacionada com as artes visuais, “desde pequenino”, conta ao P2. E manteve o propósito até hoje, aos 39 anos: “Faço imagens, sou alguém que cria imagens para diferentes suportes e vários fins.” Quando pensa num percurso de vida alternativo, “seria sempre algo relacionado com narrativa: podia ser escritor, jornalista, realizador ou fotógrafo”.
Livros infantis, banda desenhada, cartazes e capas de discos são alguns exemplos de diferentes tipos de trabalhos que tem vindo a realizar. Na imprensa, o ilustrador já colaborou com vários títulos nacionais, PÚBLICO, Independente, Ler, e internacionais, sobretudo americanos, The New York Times, The Telegraph e New Yorker. Desde 2005 que ilustra a crónica de Ricardo Araújo Pereira, Boca do Inferno, na revista Visão.
Em 2007, recebeu o Grande Prémio Stuart/El Corte Inglés de Desenho de Imprensa; em 2015, o World Illustration Award (categoria ilustração de livros); em 2015, o Prémio Nacional de Ilustração (livro Dança, edição Pato Lógico) e, em 2017, o Grande Prémio da Bienal de Ilustração de Guimarães.
Alguns dos seus trabalhos mais recentes vão ocupar a galeria da Casa da Cultura, em Setúbal. A inauguração de Bricolage, com visita guiada pelo próprio, está marcada para sexta-feira, dia 1 de Junho, à meia-noite.
Não tem uma definição fechada para “ilustração” porque está sempre a “repensá-la”, mas não duvida de que “é uma imagem em permanente diálogo com qualquer coisa”. Diz ser “muito independente na relação com os textos” e não quer que o seu trabalho siga “a falsa ideia de que a ilustração repete a narrativa ou que está lá para sublinhar um aspecto do texto”.
Clarificando: “A ilustração é a tradução de qualquer coisa numa outra linguagem. E nas traduções acontecem sempre interpretações. Depois, acrescentam algo mais, complementam uma história ou ideia e tornam a comunicação mais rica.” Dá o exemplo das inúmeras versões ilustradas de D. Quixote de la Mancha: “Cada autor ou artista pega em coisas diferentes e traz uma nova visão.”
Pensar a desenhar
Quando recebe um texto para ilustrar, João Fazenda lê-o “uma vez ou duas”, depois põe-no “de lado”. Descrição do processo: “Penso a desenhar. Às vezes, a imagem aparece logo, outras vezes é muito indefinida e vai tomando forma. Muito raramente surge logo a imagem definitiva, a tradução imediata.”
O autor acha estranho dizer isto, mas diz: “Eu não penso muito visualmente, penso conceptualmente.” E desenvolve: “Para as imagens terem independência e o diálogo funcionar, têm de existir duas partes suficientemente fortes e autónomas que comuniquem. Se uma parte está sempre devedora de outra, fica um trabalho ‘coxo’. Não quero que as minhas imagens partam de um princípio feito de palavras, digamos assim. Prefiro que surjam do desenho.”
Mas está prestes a juntar as suas palavras às suas imagens. “Tenho andado a fazer pequenas experiências. Recomecei a fazer banda desenhada aos poucos, já com histórias imaginadas por mim. Nesta altura, começa-me a interessar mais contar as minhas histórias. Talvez livros infantis”, disse ao PÚBLICO de viva voz.
Mais tarde, fez-nos chegar um depoimento por email sobre o mesmo assunto, em que valoriza o facto de em ilustração ter de se “trabalhar com outras pessoas” e de ter sido importante ter-se cruzado com “gente das mais variadas áreas e de ter aprendido muito nesse processo”. E conclui: “Durante muito tempo não tive necessidade de escrever as histórias, porque para mim era importante, ainda é, ter esses encontros com outros autores. E depois há sempre uma certa pressão quando se escreve sobre ter coisas para se dizer, o que me fez sempre confusão. Se agora já pondero começar a escrever as minhas histórias, não é porque de repente já tenha coisas importantes para dizer, mas porque já conheço melhor a forma como quero contar histórias e também porque isso se revela para mim uma continuação natural do meu trabalho com as imagens.”
Fazenda já havia referido “o receio de muita gente que trabalha a imagem de contar histórias”, mas apercebeu-se de que é infundado: “A maior parte dos ilustradores ou de quem cria uma imagem já está a contar uma história. As imagens têm princípios narrativos. Lançam-se pistas, dados. Hoje em dia sai-me quase naturalmente. A distância entre aquilo que desenho e aquilo que posso contar com esse desenho está a um passo. No fundo, é ganhar uma consciência que eu já tenho, que me apetece fazer e que vou desenvolver.”
Normalmente agradam-lhe os textos que lhe atribuem, embora já tenha tido de ilustrar alguns que não lhe “diziam nada”, mas admite divertido que “é preciso ganhar a vida”. Só se lembra de uma vez ter recusado trabalhar com um colunista português: “Não gostava nada do que ele escrevia e não queria ficar vinculado àquilo.”
Recorda ainda um texto muito diferente dos que habitualmente lhe entregam. “Pediram-me para ilustrar uma história muito trágica, de um filho que tinha assassinado os pais. Ficou uma ilustração muito pesada, mas gostei de fazer. Foi um exercício diferente.”
Olhar para trás
O ilustrador quer explicar aos leitores que, quando se trabalha para imprensa, “raramente se recebe um texto completo”, recebe-se “uma ideia, um tema, um parágrafo”. E conta, descontraído, a sua experiência com as crónicas de Ricardo Araújo Pereira: “Só as leio quando já estão impressas. Antes, só sei sobre o que é que ele vai escrever. E nunca se sabe o que é que sai dali…”
Algumas dessas imagens vão estar expostas na Festa da Ilustração, que se prolonga até 30 de Junho, “é um trabalho muito particular dentro daquilo que vou fazendo”, diz, “mistura comentário político, social e é feito num registo muito rápido, imediato”.
Bricolage não é uma retrospectiva, mas obrigou-o a olhar para o que tem andado a fazer: “Um ilustrador faz dezenas de coisas diferentes e tentar reunir material e dar alguma coerência é o desafio destas exposições.”
Uma das secções vai chamar-se Palco, “a imagem como palco de teatro tem que ver com a ideia de construção de espaços e de actores, figuras. Olhando para trás, as minhas ilustrações têm muito essa componente, são quase trabalhos de encenação. É uma linha que me interessa”.
Num registo diferente, irá mostrar “desenhos de linha”, que fez, no ano passado, numa edição de autor, com cerca de 80 imagens: “Eu desenho muito, não são bem diários gráficos. É o meu diário gráfico. Todas essas experiências vão depois alimentando o trabalho que é mais visível. São desenhos com simplicidade, vivem da linha, uma expressão que normalmente não está associada ao que faço.”
Não são desenhos à vista, “são personagens, têm histórias, no fundo, são coisas que estão próximas do meu imaginário, mais pessoais, mais simples, não enchem o olho, são diferentes”.
Identidade e repetição
Também haverá espaço para banda desenhada, e o ilustrador recorda que já foi há 20 anos que publicou o seu primeiro livro neste domínio, Loverboy. Poderá ainda ver-se alguns cartazes que produziu, capas de discos, nomeadamente dos Deolinda, assim como desenhos inéditos, mas que são próximos aos que as pessoas conhecem e logo identificam como sendo do autor. Pretexto para falarmos de identidade e repetição e perguntarmos como se gerem.
“Não há uma fórmula, não sei responder a essa pergunta”, diz com sinceridade. Mas esforça-se por lá chegar: “Como é que me posso surpreender com aquilo que vou fazer a seguir? Tem de haver um lado de surpresa. É muito difícil ter uma consciência de percurso. Essa gestão é feita quase de uma maneira inconsciente.”
Continua: “Se há um momento em que eu estou cansado de coisas que estou a fazer (houve alturas em que isso aconteceu), devo ser o primeiro a perceber isso. Há uma altura em que vou querer mudar ou mexer. Outra coisa é nunca deixar de ter curiosidade e vontade de experimentar coisas.” E diz deparar-se com isso ultimamente. “Quando temos 15 anos e decidimos que queremos fazer isto ou aquilo, temos uma energia própria e um certo atrevimento que é difícil manter pela vida fora. Todas as condicionantes e a própria experiência alteram isso. Aquela energia punk entre os três acordes não dura para sempre. Mas eu continuo com o mesmo fascínio a descobrir autores e a olhar para as coisas do mundo com muita curiosidade. Isso serve-me de garante de que essa energia de alguma forma se mantém.”
Não partilha da ideia de que “está tudo feito” e vai “fazendo, experimentando e descobrindo coisas novas”, mesmo que “não as mostre”. Não tem preferência por ilustrar livros ou crónicas, do que gosta é de “explorar as imagens, o que é que elas podem ser, em que podem tornar-se, transformar-se, relacionar-se com várias coisas”. Daí não ter propriamente um registo de eleição. “Gosto de ilustrar crónicas, mas também reportagens, fazer um cartaz para uma peça de teatro. No fundo, gosto de construir estas imagens e de as adaptar aos formatos. A ilustração vive disso.” E exemplifica com diferentes formatos e suportes: “Podemos pensar numa ilustração que está num quadradinho num jornal ou que pode estar num outdoor ou numa T-shirt. Essa diversidade e capacidade de se expandir é importante.”
Sobre o ter de lidar com a expectativa das pessoas em relação ao seu trabalho e à forma de não ficar preso ao que identificam como sendo dele, fala-nos daquilo a que normalmente chamamos “estilo”. “Na ilustração, esse reconhecimento fica quase sempre pelo estilo visual. Eu entendo o estilo de maneira um pouco diferente, como uma maneira de olhar para as coisas, um olhar e a forma de traduzir esse olhar através das imagens. Isto implica, claro, as escolhas de registo gráfico que se fazem, mas na verdade dá-me a liberdade que entendo como necessária à mudança e à experimentação.”
Quando lhe falamos de outros “Fazendas”, ilustradores que vão surgindo com registos idênticos, diz: “A linguagem que eu tenho é uma linguagem próxima de algumas tendências, coisas que ficaram na moda. As coisas tocam-se, mas ou evoluem ou ficam por aí.”
Caótico e próximo da pintura
E que técnicas usa alguém que estou Artes Gráficas na Escola António Arroio e se licenciou em Pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa? “Estou entre gerações e escolas. Desenho ainda à mão, com tintas, e sujo-me bastante. Mas depois a parte de cor, de edição, é digital”, começa por descrever. E prossegue: “É um processo cada vez mais caótico e mais próximo da pintura até. É engraçado, tenho-me apercebido disso ultimamente.”
Essa proximidade com a pintura é explicada pela analogia com o processo “pinta, tira, limpa, adiciona, coloca, faz”, que agora é transposto para a segunda fase da criação, já em ambiente digital. “Eu tenho a base, sei o que é que vou fazer, uma estrutura, a composição. Tento ter isso logo o mais definido possível, mas depois esse trabalho da pintura, de adicionar, colar, mexer, faço-o de uma forma digital. Introduzo todos os elementos e depois retiro, colo, corto.”
Diz não ser “muito picuinhas” (mas entretanto ri-se e reflecte: “Quem é picuinhas diz sempre que não é”) nem perfeccionista. “Sou exigente. Já me aconteceu ter um trabalho pronto e começar de novo por não estar satisfeito. Já me aconteceu ver coisas que depois penso que devia ter feito de outra maneira. Temos de aprender a viver com isso.”
Sendo o trabalho de ilustração “muito fragmentado”, é difícil ter uma noção de conjunto sem ser quando algo obriga a parar. “A verdade é que se encontram linhas”, diz, enquanto recorda um momento em que revisitou trabalhos antigos. “Há uns anos, eu não me estava a reconhecer num trabalho ou as coisas não estavam a funcionar. Nessa altura, olhei para trabalhos que tinha feito antes e pensei: estava aqui, desviei-me num sítio qualquer. Mas ainda bem que experimentei.”
Política de imagem zero
João Fazenda, que voltou a viver em Lisboa depois de uma década a residir em Londres, acredita que a ilustração portuguesa está de boa saúde. “Com todas as condicionantes que existem, acho que há trabalho suficiente, bom e diversificado em vários registos e para vários suportes. Mesmo tendo em conta a dificuldade em vender ilustração e tendo em conta que o mercado português é pequeno.”
Não gosta de que se queixem que “ninguém usa ilustração” e diz que “o problema é a forma como as imagens são usadas”. Fala de bancos de imagem, “que até podem ser interessantes do ponto de vista criativo, mas são a política de imagem zero, para ‘encher chouriços’”. E alerta para uma certa ironia actual relativamente ao preconceito que existia sobre as ilustrações serem apenas “um boneco”, algo para “simplificar a leitura”. Para ele, as ilustrações “não simplificam, acrescentam significados”, mas o que “muita imprensa e muito audiovisual promovem agora com os bancos de imagem é ‘o boneco’ que não acrescenta nada, não dialoga, não torna a interpretação nem a comunicação mais ricas, o mesmo com a fotografia, nivelada por baixo”.
Diz que em Portugal “a ilustração tem um problema crónico, nunca ganha espessura histórica para se reclamar como disciplina e para ser reconhecida, há falta de discurso crítico”. Por isso defende que "iniciativas como a Festa da Ilustração de Setúbal são importantes para isso e para criar novos públicos”. Comparando com outras disciplinas, a ilustração, diz, tem também “o problema da efemeridade”.
Fazenda tem vindo a descobrir “artistas portugueses que fizeram coisas incríveis durante anos e anos e estão completamente esquecidos”. Admite que, “se calhar, na altura deles, foram falados num meio pequenino, mas hoje ninguém os conhece”. Enfatiza por isso “o trabalho notável de recuperação desses ilustradores” por parte de Jorge Silva, que nesta edição da festa comissaria a exposição retrospectiva de Tóssan (Galeria Municipal do 11). “É bom que esses trabalhos sejam recuperados para se ganhar consciência histórica. Para contrariar esta ideia de que estamos sempre a inventar qualquer coisa – não estamos. Para aprender com o que já foi feito”, conclui.
Três artistas completos
Fizemos a “maldade” de pedir a João Fazenda que nos indicasse ilustradores que todos deveríamos conhecer. Enviou-nos por correio electrónico três nomes e as respectivas explicações, dizendo que “servem de exemplo a uma ideia de ilustração como campo de imagem em expansão”.
Saul Steinberg, “que tem uma obra vasta e variada com uma carga filosófica e conceptual muito grande e simultaneamente de uma simplicidade e liberdade gráfica sempre desarmante”; Henning Wagenbreth, “que tem um trabalho e universo gráfico únicos, muito geométrico e vibrante”, e Christoph Niemann, “que hoje em dia é quase um estrela rock da ilustração a nível internacional, tem um documentário dedicado ao seu trabalho na Netflix, Abstract, cujo trabalho está sempre em mutação e revela uma constante curiosidade e surpresa na observação do mundo”.
Disse ainda: “São três nomes com trabalhos muito diferentes mas que têm em comum o facto de se estenderem por variados suportes e formatos, e cujos trabalhos desafiam a ideia do que é um ilustrador, do que é a ilustração, e que se apresentam como obras inteiras, de artistas completos.”
Alerta para que, no caso português, “é preciso descobrir as obras de tanta gente que fez trabalhos incríveis”. Mesmo assumindo que se torna difícil nomear alguém, sugere Maria Keil, Luís Filipe de Abreu e Abel Manta.
Sobre Tóssan já tinha falado na conferência de apresentação da festa, quando contou que em tempos estivera com o artista: “Muito provavelmente, foi o primeiro ilustrador que conheci pessoalmente. O meu pai conhecia-o por alguma razão e lembro-me perfeitamente de ir ao atelier dele, tinha quatro ou cinco anos.”
Não sabe se esse episódio terá tido alguma influência naquilo que veio a fazer da vida, mas estava feliz com o “reencontro”. Nós também.