Bienal de Veneza atribui Leão de Ouro a Souto de Moura pela radicalidade de um gesto simples
Júri da exposição distinguiu o complexo turístico de São Lourenço do Barrocal, a recuperação de um monte alentejano e a sua adaptação a hotel.
O arquitecto português Eduardo Souto de Moura viu este sábado de manhã ser-lhe atribuída pela Bienal de Arquitectura de Veneza a máxima distinção que um arquitecto pode receber aqui por um projecto de arquitectura: o Leão de Ouro para o melhor participante na mostra internacional, este ano dedicada ao tema “espaço livre”. Tal como o Prémio Pritzker de Arquitectura, que Souto de Moura já recebeu em 2011, o Leão de Ouro de Veneza está entre os prémios mais importantes com que um arquitecto pode ser distinguido.
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O arquitecto português Eduardo Souto de Moura viu este sábado de manhã ser-lhe atribuída pela Bienal de Arquitectura de Veneza a máxima distinção que um arquitecto pode receber aqui por um projecto de arquitectura: o Leão de Ouro para o melhor participante na mostra internacional, este ano dedicada ao tema “espaço livre”. Tal como o Prémio Pritzker de Arquitectura, que Souto de Moura já recebeu em 2011, o Leão de Ouro de Veneza está entre os prémios mais importantes com que um arquitecto pode ser distinguido.
Entre os 71 participantes desta exposição comissariada pelas arquitectas irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara (Grafton Architects), na qual estão mais dois arquitectos portugueses, Álvaro Siza e Inês Lobo, o júri escolheu o complexo turístico de São Lourenço do Barrocal, a recuperação de um grande monte alentejano e a sua transformação num hotel nos arredores de Monsaraz. O Leão de Ouro para a melhor participação nacional, a que também concorria o pavilhão português com uma exposição dedicada aos edifícios construídos durante os anos da crise, foi para a Suíça.
Numa mostra em que é possível ver a arquitectura representada de todas as maneiras — desde grandes instalações, quase à escala real ou mesmo à escala real, nos mais diversos materiais, até sofisticados meios audiovisuais ou mesmo bolas de sabão —, Souto de Moura, num gesto radical, optou por mostrar apenas duas grandes fotografias aéreas, um antes e depois da intervenção. Com uma área de construção de 13 mil metros quadrados, a obra foi terminada em 2016. “É um gesto contra o folclore e o espectáculo. São capazes de pôr maquetas com uma dezena de centímetros em caixas de três metros”, disse Eduardo Souto de Moura ao PÚBLICO, logo depois de ter recebido o prémio, que agradeceu com umas breves palavras em italiano. “Esta bienal trata o tema do espaço livre e um dos meus projectos mais ligados a isso é o Barrocal. Está no meio do Alentejo, é uma rua, é uma praça, tem jardins, tem pátios, mostra uma hierarquia de espaços livres, além da paisagem à volta.”
Além da singeleza da representação, que se resume a duas fotografias enquadradas pela luz natural de uma das janelas do espaço expositivo do Arsenal, a própria obra, explica Souto de Moura, é também uma defesa de que “não é preciso pôr inox e vidro” para fazer arquitectura contemporânea. Aos 65 anos, o arquitecto do Porto reconhece a radicalidade do seu gesto, embora prefira a palavras “simplicidade”, acrescentando que quem já comentou a sua apresentação no Arsenal, principalmente colegas arquitectos, o tem elogiado “pela frescura”.
O que Eduardo Souto de Moura quis mostrar com estas duas fotografias enormes feitas a partir de um avião pela fotógrafa italiana Alessandra Chemolo foi exactamente que entre o antes e o depois da intervenção da arquitectura “tudo parece igual, mas tudo é diferente”. Souto Moura procura uma arquitectura cada vez mais intemporal: “Um edifício pode ser feito de grandes pedras ciclópicas, como a capela que fiz aqui para o Vaticano, que é contemporâneo.”
Na mesma bienal, o arquitecto português participou também no pavilhão nacional da Santa Sé, que convidou dez arquitectos internacionais para construírem uma capela na ilha de San Giorgio Maggiore. Souto de Moura propôs uma capela em pedra, numa belíssima e surpreendente intervenção. Está igualmente representado no Pavilhão de Portugal com uma estação do Metro de Nápoles, feita em conjunto com Álvaro Siza e Tiago Figueiredo, exposta ao lado do trabalho de mais 26 arquitectos nacionais, numa exposição intitulada Público sem Retórica, dedicada à encomenda pública nos anos da crise, com comissariado de Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah.
Elegância da representação
A presidente do júri, a chilena Sofia von Ellrichshausen, explicou ao PÚBLICO, “que ficaram todos impressionados com a simplicidade da apresentação e a elegância da representação”. É também uma proposta que cria no espaço da Cordoaria no Arsenale, onde é apresentada a exposição, um “espaço mental”, o que é muito importante quando se mostra arquitectura.
“É necessário tempo para contemplá-la, deixando que a nossa imaginação chegue ao lugar: o que é que está a acontecer entre uma fotografia e a outra? Apresenta-se isso de uma forma subtil, sem fazer alarido e percebemos que, com esse gesto tão simples — num espaço vazio muito bonito com uma janela no meio —, Eduardo Souto de Moura nos permite ler noções de tempo, de continuidade. Lemos a presença de um objecto com a paisagem à volta.”
Sem fazer quase nada, o arquitecto arrasta-nos para dentro dos espaços, defende a presidente do júri, “permitindo que a nossa imaginação se expanda e encha os intervalos”. Numa bienal, é importante que o visitante consiga construir uma experiência sem que tudo lhe seja dado já digerido, diz esta arquitecta chilena do atelier Pezo von Ellrichshausen, que já esteve em Portugal, nomeadamente na Trienal de Arquitectura de Lisboa, e conhece bem a obra de Souto de Moura, mas “ainda” não conhece o arquitecto pessoalmente.
O júri da bienal, que é composto também pelo arquitecto norte-americano Frank Barkow, pela curadora australiana Kate Goodwin, pela arquitecta Patricia Patkau e pelo arquitecto e crítico Pier Paolo Tamburelli, escreveu, lê-se no comunicado de imprensa, que as duas fotografias aéreas “revelam a relação essencial entre arquitectura, tempo e lugar”. E, acrescenta, “o espaço livre aparece sem ser anunciado, com clareza e simplicidade”.
Abraço a Frampton
Antes da cerimónia de entrega, Souto de Moura tinha trocado um grande abraço premonitório com o crítico e ensaísta britânico Kenneth Frampton, que recebeu nesta edição o Leão de Ouro pela carreira, um prémio que é anunciado muito antes de a bienal ter início, depois de uma sugestão das comissárias irlandesas. Frampton tem estudado a arquitectura portuguesa, através dos seus livros publicados sobre o regionalismo crítico que fazem uma revisão do modernismo, integrando os arquitectos portugueses num contexto internacional.
No final da cerimónia, já com o Leão de Ouro na mão, veio o abraço do secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, que esteve em Veneza para inaugurar a representação oficial portuguesa. “É uma fantástica notícia e no fundo a confirmação da grande obra do arquitecto Souto de Moura e também a confirmação de que a arquitectura portuguesa é uma das grandes arquitecturas contemporâneas”, disse Miguel Honrado mais tarde ao PÚBLICO, lembrando que Álvaro Siza já ganhou duas vezes o Leão de Ouro, em 2012 (carreira) e em 2002 (projecto).
A arquitecta Inês Lobo, que também tem um projecto na exposição Espaço Livre, estava feliz e divertida com a justeza e ironia do prémio dado a Souto Moura: “A resposta ao tema lançado não é só a apresentação de um belíssimo projecto, mas antes de mais uma resposta muito inteligente àquilo que dever ser uma exposição de arquitectura.”
Capela extraordinária
O arquitecto Manuel Aires Mateus, que está presente na mesma exposição no Arsenal na secção dedicada à relação entre a prática profissional e o ensino da arquitectura, que não é apreciada pelo júri, quis destacar também a qualidade da capela em pedra que Souto de Moura fez para o Pavilhão da Santa Sé. “Acho muito bem que o Leão de Ouro tenha sido atribuído ao Eduardo, que faz obras completamente ímpares, sendo capaz de ver em cada projecto uma possibilidade e encontrar a resposta mais justa”, disse o mais recente Prémio Pessoa. “Ele vai do gesto mais discreto da reinvenção da ruína, como no Barrocal, até à transcendência que nos provou na capela, mas o que é extraordinário aqui é a capela, uma obra sem tempo, que condensa toda a obra de Eduardo Souto de Moura em poucos metros quadrados.”
Eduardo Souto de Moura foi o primeiro a ficar surpreendido com o prémio atribuído a uma “recuperação modesta” e, de certa forma, relativamente secundária: “Os prémios são sempre assim – só se recebe quando não se espera.” Souto de Moura reconhece, nas suas recuperações, numa linhagem que começou com a Pousada de Santa Maria do Bouro, quando fez um projecto moderno com pedras antigas, uma das suas obras mais conhecidas e copiadas: “A tendência é aproximar-se cada vez mais do original, não construindo uma linguagem própria que se oponha ao original. Com o tempo acredito cada vez mais numa arquitectura intemporal. Mudam os materiais, mudam as técnicas, mas é sempre a mesma arquitectura.”
No barrocal do Alentejo, as partes novas feitas em betão são forradas com os tijolos maciços e caiadas: “Quando o sol bate, faz uma vibração muito especial. Até podíamos pôr uma tabuleta a dizer: ‘Fabricam-se antiguidades.’”
A arquitecta paisagista Cláudia Taborda, que visitou a bienal de Veneza depois de um semestre a dar aulas em Harvard de teoria de arquitectura paisagista, defende que a obra de Souto Moura actualiza o lugar: “A obra continua no espaço de paisagem onde se inscreve o tempo, a resiliência e a adaptabilidade que lhes são, ou devem ser, inerentes. É uma obra com uma espacialidade atemporal sem recorrer a interpretações de paisagem e de ruralidade nostálgicas.”