Eutanásia: um modo totalitário travestido de liberdade
Não há mal de que provenha bem (São Paulo, Carta aos Romanos)
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Não há mal de que provenha bem (São Paulo, Carta aos Romanos)
Volto às iniciativas legislativas sobre a legalização da eutanásia que, na próxima semana, vão ser discutidas na Assembleia da República.
Diz o artigo 24º nº 1 da Constituição da República Portuguesa: “A vida humana é inviolável”. Disposição votada por unanimidade na Assembleia Constituinte e jamais alterada nas sucessivas revisões constitucionais.
É caso para perguntar aos deputados proponentes qual destas palavras é que não entendem: VIDA? HUMANA? INVIOLÁVEL? Quanto a este último vocábulo, dizem os dicionários que significa “que não se deve ou não se pode violar”, “sagrado”, “invulnerável”. Há dúvidas? Quanto à vida humana, será que a vida de uma pessoa, mesmo que em situação de grande dor e sofrimento, deixou de ser vida? Ou que passaremos a ter a noção de vida humana, não como um conceito absoluto, mas moldável e relativizado com fronteira (?) definida pelo mutável e circunstancial direito positivo? Será que os deputados proponentes acham que se podem arrogar o direito de definir por nós todos o que sendo vida pode deixar de ter valor de vida, qual algoritmo infalível? Curiosamente foi este bem soberano da lei natural – a vida - que muitos dos mesmos deputados invocaram na discussão da legislação sobre o aborto, dizendo então que até às x semanas (x em função das conveniências) não se tratava ainda de vida, para, assim, disfarçarem a violação daquele preceito constitucional. Pois agora, nem essa enganosa argumentação colhe. Vida é vida, mesmo que em circunstâncias dramáticas. Vida é vida que não pode ser terminada legalizando a morte através de terceiros e por actos ditos clínicos.
E porquê tanta pressa em querer aprovar estes projectos? Onde estavam estas intenções nos propósitos eleitorais dos partidos proponentes nas últimas eleições? Como, numa matéria tão sensível e disruptiva, podem deputados fazer aprovar uma lei para a qual não foram mandatados democraticamente? Ou será que eutanásia não sufragada nos seus programas partidários é o mesmo que uma qualquer outra lei avulsa sobre um qualquer outro tema? Ou será que a insuficiência ética pode ser substituída pela suficiência jurídica, como se o direito positivo pudesse contrapor-se ao direito natural? Acharão os deputados proponentes que podem legiferar sem sequer se terem preocupado em proporcionar um amplo debate sobre a matéria? Acharão que as pessoas estão esclarecidas devidamente e que sabem distinguir, por exemplo, a eutanásia de legitimas práticas de “encarniçamento terapêutico”?
Dizem-nos que o Estado apenas se limitaria a salvaguardar a sua neutralidade (!) em nome dos direitos de liberdade e de autonomia individuais. Uma completa falácia. A eutanásia não representa um exercício de liberdade, mas a supressão da própria raiz da liberdade. O direito à morte é tão absurdo como dizer que temos o “direito à doença”, no entanto, com a diferença da irreversibilidade no primeiro caso. O Estado, ao permitir a prática da eutanásia, está a decretar que o direito à vida é disponível e renunciável. Onde paramos?
Dizem-nos também que a pessoa a eutanasiar tem de dar o seu consentimento livre e consciente. O homicídio a pedido não deixa de ser homicídio por ser autorizado e pedido por uma pessoa. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular. Aliás, a anuência nunca será, só por si, condição suficiente para justificar situações de violação dos direitos humanos inalienáveis da pessoa. Por exemplo, a escravatura é sempre um vil e inaceitável atentado à dignidade da pessoa, mesmo que alguém a possa ter aceitado em situações de coacção. Tal como outras formas ignóbeis de exploração do trabalho.
Hoje e cada vez mais, há meios clínicos e farmacológicos para, através de cuidados paliativos, aliviar situações extremadas de dor e sofrimento, mesmo que assim sendo até se venha a diminuir o tempo restante de vida do doente. Não se compreende que com o ineludível e crescente avanço nesta matéria, se venha a querer legalizar a eutanásia. Ela nunca se justificaria, mas ao menos é lógico pensar que alguém a pudesse melhor compreender há décadas quando quase não havia meios de cuidar e ajudar as pessoas em situações extremas.
Perante esta realidade a mensagem perversa que se está a transmitir à Sociedade é a de que a legalização da eutanásia é um meio alternativo e, sub-repticiamente, se está a deixar construir a ideia de um Estado-Pôncio Pilatos que, da escassez de meios paliativos, lava as suas mãos. O que é mais conforme a dignidade da pessoa: uma “morte digna” provocada por via da eutanásia ou um “fim de vida digno” em nome da ética de cuidar?
Numa sociedade cada vez mais envelhecida, perante a dor e sofrimento, a prioridade das prioridades deverá ser o desenvolvimento de uma rede alargada de tratamento da dor, de cuidados geriátricos e continuados e de cuidados paliativos. Sim, alargada até para estar disponível para os mais pobres, os mais sós e as pessoas que vivem fora dos grandes centros (que já sofrem no corpo e na alma a “eutanásia social” a que vão sendo sujeitos). A legalização da eutanásia contribuiria para esbater a consciência social da necessidade e urgência de criar uma verdadeira rede. Transmite-se a ideia de que, face ao “fardo” da velhice e da doença e aos nunca resolvidos défices do sistema público de saúde, para quê gastar tantos recursos com doentes terminais quando o tempo final das suas vidas pode ser encurtado.
Importa alertar para a rampa deslizante que se seguiu, abastarda e levianamente, em alguns dos poucos países que legalizaram a prática de eutanásia. Neles, tudo começou com muitas restrições. Mas hoje, na Holanda, Bélgica e Suíça (aqui apenas no “suicídio assistido”), já há muitos casos abrangendo derivas eugénicas com bebés e crianças com deficiências graves, adultos com grave deficiência, doentes psiquiátricos (para 25% destes, os pareceres dos médicos psiquiatras não foram sequer no sentido de justificar o pedido de eutanásia) e outros doentes por pressão subtil de familiares. E já se discute até o direito à eutanásia por cansaço de viver!
Enfim, certa esquerda (cá e lá fora) sabendo que não é capaz de proteger e aprofundar os direitos sociais como sempre proclamou, vira-se para criar pretensos direitos de cidadania, mais baratos ou sem custo, mediaticamente mais apelativos e para os quais bastam uma lei e umas assinaturas. A legalização da eutanásia é um desses apregoados direitos. Uma expressão neototalitária através de um relativismo ético pelo qual cada desejo se arrisca a transformar num direito. Neste caso, através de terceiros a quem se pede que a tal direito não contraponham o seu dever e a sua deontologia!
Estamos perante um retrocesso civilizacional e o perigo de desestruturar a sociedade no seu pilar fundamental. Atrasados em tantos aspectos da nossa vida colectiva, queremos ser pioneiros nesta insondável cultura da morte, apresentada eufemisticamente como avanço social. É a nossa triste dianteira!
P.S. O Primeiro-ministro de Portugal não quis dizer na AR qual a sua posição sobre a eutanásia, apesar de sempre nos brindar com a sua opinião sobre todas as minudências. Pura arte de fazer política…