A expressividade de uma casta com nome de navegante

O Tejo tem vaidade na casta branca que domina as suas vinhas. E com razão. A Fernão Pires tem nome de descobridor, mas é uma variedade que tanto dá vinhos aromáticos e modernos quando jovem como reúne trunfos na componente ácida ou no volume para criar vinhos com uma longevidade surpreendente.

Foto

A Fernão Pires é uma casta branca, o que à primeira vista poderia configurar uma identidade de género. Não será o caso, até porque há muitas castas com o género masculino a integrar o património dos vinhos brancos, a começar na Rabigato e a acabar no Alvarinho. Também não haverá problema de maior com o facto de a Fernão Pires se chamar Maria Gomes na Bairrada. Apesar do seu nome nos lembrar mais uma figura dos Descobrimentos do que uma variedade de uva, a Fernão Pires é a casta branca mais plantada em Portugal (13.700 hectares) e é sem dúvida a rainha dos brancos do Tejo, onde representa 30% do encepamento da região. E é uma casta tão relevante e acarinhada que os produtores do Tejo a designam como “a mais expressiva” da região e a querem mostrar como um activo, como um símbolo de distinção capaz de fazer face aos trunfos que o Alentejo exibe com a Antão Vaz, o Dão com a Encruzado, os Verdes com a Alvarinho ou o Douro com a Viosinho (num papel aqui com menor protagonismo).

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A Fernão Pires é uma casta branca, o que à primeira vista poderia configurar uma identidade de género. Não será o caso, até porque há muitas castas com o género masculino a integrar o património dos vinhos brancos, a começar na Rabigato e a acabar no Alvarinho. Também não haverá problema de maior com o facto de a Fernão Pires se chamar Maria Gomes na Bairrada. Apesar do seu nome nos lembrar mais uma figura dos Descobrimentos do que uma variedade de uva, a Fernão Pires é a casta branca mais plantada em Portugal (13.700 hectares) e é sem dúvida a rainha dos brancos do Tejo, onde representa 30% do encepamento da região. E é uma casta tão relevante e acarinhada que os produtores do Tejo a designam como “a mais expressiva” da região e a querem mostrar como um activo, como um símbolo de distinção capaz de fazer face aos trunfos que o Alentejo exibe com a Antão Vaz, o Dão com a Encruzado, os Verdes com a Alvarinho ou o Douro com a Viosinho (num papel aqui com menor protagonismo).

Terão argumentos os produtores do Tejo? Uma visita à região seguida de provas com vinhos extremes de Fernão Pires da última vindima e com vinhos de colheitas antigas parece justificar a ousadia. Os vinhos base, principalmente os que provêm da região mais fértil do Campo, na área aluvionar mais próxima do rio, são simples, directos e profundamente marcados pela expressividade da fruta. Ou, por outras palavras, são vinhos que se ajustam a um segmento muito importante do mercado nacional e internacional, que nos segmentos mais baixos, prefere a exuberância aromática, as notas de fruta tropical, uma acidez contida e um volume de boca marcante. Mas, no Tejo a Fernão Pires pode ir muito mais longe. Na zona do Bairro, na margem direita, até às faldas das serras dos Candeeiros, de Montejunto ou dos maciços de Porto de Mós ou na zona da Charneca, na margem esquerda, mais quente e com solos arenosos e mais pobres, a casta pode gerar com mais facilidade vinhos com outro requinte e complexidade.

Foto

Seguindo o perfil identitário da generalidade das regiões portuguesas de vinho, o Tejo é um puzzle composto por estes três terroir e em cada um há vocações prioritárias para a produção de tinto (caso do Bairro) ou de Branco (caso do Campo, onde a Fernão Pires pode atingir produções elevadíssimas, até 30 toneladas de uvas por hectare). Dos seus 12.500 hectares de vinhedo, saem em média todos os anos 60 milhões de litros de vinho, metade branco e metade tinto, embora uma grande parte continue a não ser certificada, acabando por ser vendida a granel. A região exporta um terço do que produz e não tem razões de queixa dos seus negócios com o exterior – a procura dos seus seis principais mercados tem crescido à razão de dois dígitos nos últimos anos. Nesta actividade, a produção de brancos é crucial e a Fernão Pires desempenha nesta tendência um papel de relevo. Não admira por isso que seja a casta que continua a ser mais plantada na região, ocupando 25% do total das novas plantações.

Região antiga na produção de vinhos, o Tejo dos vinhos brancos é muito mais do que a Fernão Pires. Há por lá castas estrangeiras como a Sauvignon Blanc ou a Chardonnay, castas migrantes de outras regiões do país como a Alvarinho ou variedades em recuo presentes nas vinhas mais velhas – caso da Tamarez, a Trincadeira das Pratas ou a Vital, que produtores mais irreverentes continuam a cultivar com sucesso. Muitas destas castas cruzam-se em lotes partilhados com a Fernão Pires. De resto, a versatilidade da Fernão Pires é um dos seus mais poderosos trunfos. Tanto permite compor lotes, como produzir varietais ou ser sujeita a colheitas tardias como a que a Quinta da Alorna produz com sucesso – a edição de 2014 foi um dos vinhos premiados no mais recente concurso da ViniPortugal.

Quando jovens, os vinhos Fernão Pires exibem uma exuberância aromática que compara com as castas com mais pergaminhos neste atributo – como a moscatel. A prova dos vinhos de 2017 provenientes do Campo revela aromas tropicais muito intensos, baixa acidez e volume de álcool abaixo dos 13%. Neste particular, o Quinta da Lagoalva destacou-se. Proveniente de uma vinha com 40 anos, apresenta uma acidez acima da média, aroma fino, com notas cítricas, sinais de oxidação que oferecem um toque distintivo e um volume e secura no final de prova muito interessante. É um belo branco para sinalizar o potencial da Fernão Pires. Impôs-se facilmente aos vinhos provenientes do Bairro.

O caso das provas com amostras da Charneca mostra um perfil da casta muito mais elegante e sofisticado. Aqui, alguns vinhos sobem acima dos 13% do volume de álcool. O Quinta do Casal Branco mostra secura e mineralidade no final. E vale a pena ainda aguardar pelo Fernão Pires da Companhia das Lezírias que, apesar de nesta fase estar ainda muito marcado pela madeira, tem um enorme potencial de evolução. Curiosos, e muito atraentes, são também os Colheitas Tardias desta casta, em especial o Casal Branco da Falcoaria e o Quinta da Alorna.

Foto

Terão os Fernão Pires do Tejo pergaminhos suficientes para enfrentar a magnífica concorrência das castas brancas mais emblemáticas (Alvarinho, em destaque) ou emergentes (a Encruzado, que já é uma certeza absoluta pelo nível de originalidade e riqueza que emprestou aos vinhos do Dão)? Uma das suas vantagens, a versatilidade e capacidade de produzir brancos com estilos tão diversificados, é também um dos seus problemas. É difícil associar a casta a um estilo definido, facilmente identificável nos seus descritores fundamentais (volume, acidez ou personalidade aromática). Mas não há dúvidas que, desta região, podem sair brancos de grande categoria e, se forem bem trabalhados, com um potencial de guarda notável. Razão mais do que suficiente para que o Tejo aposte na sua “casta mais expressiva”.