Uma dança a sete com edifícios ausentes

Capítulo final de uma trilogia em que a dança se relaciona com a arquitectura, 7 traz de novo Radouan Mriziga ao Alkantara Festival. Sexta e sábado, no São Luiz, em Lisboa, um criador de enorme originalidade e de enorme mistério.

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BENIAMIN BOAR

Munido de giz e fita adesiva, em 55 (2014), o coreógrafo e bailarino marroquino Radouan Mriziga transformava o seu corpo numa ferramenta com a qual desenhava figuras geométricas no solo. Foi a primeira resposta que encontrou para a necessidade de pensar a dança a partir de uma perspectiva funcional – que pudesse balizar-se por regras e pensamentos próprios da arquitectura, da escultura ou até do artesanato. Numa acumulação de pequenos gestos que pareciam pouco mais do que uma sucessão de nadas, percebíamos às tantas estar a ser arrastados para uma construção extraordinária que se revelava com parcimónia e vagar.

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Munido de giz e fita adesiva, em 55 (2014), o coreógrafo e bailarino marroquino Radouan Mriziga transformava o seu corpo numa ferramenta com a qual desenhava figuras geométricas no solo. Foi a primeira resposta que encontrou para a necessidade de pensar a dança a partir de uma perspectiva funcional – que pudesse balizar-se por regras e pensamentos próprios da arquitectura, da escultura ou até do artesanato. Numa acumulação de pequenos gestos que pareciam pouco mais do que uma sucessão de nadas, percebíamos às tantas estar a ser arrastados para uma construção extraordinária que se revelava com parcimónia e vagar.

Sozinho em cena, Radouan Mriziga testava aquilo que podia ser a sua dança, após vários anos na escola P.A.R.T.S., de Anne Teresa de Keersmaeker, em Bruxelas. Era um processo de descoberta que o público testemunhava em primeira mão. Mas já então Mriziga sabia que 55 era um número que traria outros de arrasto. Logo em seguida viria 3600, coreografia para três bailarinos que se demorava 3600 segundos e que se socorria de 360 tijolos para esboçar uma pequena construção; depois, 7, o espectáculo com que regressa agora ao Alkantara Festival (sexta e sábado no Teatro São Luiz, em Lisboa), capítulo final desta sua primeira investida no pensamento sobre a relação entre dança e arquitectura – e geometria e matemática.

55 mantém-se como o alicerce de toda a trilogia. Tudo partiu desse primeiro momento, isolado, de reflexão sobre o lugar ocupado pelo corpo enquanto meio e medida de construção. E volta a surgir em 7, com os bailarinos a retomarem o giz e a fita adesiva para desenhar novas figuras geométricas no chão. Mas é uma passagem, uma sinalização de que Radouan não chega a 7 sem ter na retaguarda 55. 3600 faz-se sentir sobretudo como rastilho para esta peça. Depois de promover construções com materiais concretos, o coreógrafo havia de aperceber-se de que precisava de avançar para “outro nível nesta pesquisa de arquitectura imaginária”. E levou a imaginação à letra.

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Quando projectou reconstruir as sete maravilhas do mundo antigo através de sete bailarinos que, em sete solos, se dedicam a reclamar cada uma das dessas obras monumentais para o seu universo, Mriziga estava consciente de que criava uma ligação com um mundo desaparecido. Dessas sete maravilhas só a Pirâmides de Gizé sobrevive hoje. Por isso, em 7 as edificações não têm uma dimensão corpórea. “Pensei em reconstruir as sete maravilhas através de uma arquitectura efémera mas que possa durar no imaginário das pessoas”, diz Radouan ao Ípsilon. “Constroem-se na imaginação de cada um e não precisam ocupar um espaço.”

Mistério e beleza

Palavras, movimentos, desenhos, quaisquer acções dos sete intérpretes em palco são dirigidas a esse lugar interior. É como se, na verdade, desenhassem dentro da imaginação do público, edificassem na cabeça de cada espectador as sete maravilhas que Radouan descreve como “uma mistura de arquitectura, escultura e jardinagem”. Mas, ao fazê-lo, os bailarinos evocam sempre uma monumentalidade que parece fazer os seus corpos mais pequenos, carregando-lhes a beleza com fragilidade, vulnerabilidade e humanidade – erguendo a sua própria maravilha.

“Isto simboliza que o que desenvolve o mistério e a beleza é o corpo humano, não aquilo que ele produz”, diz o coreógrafo. Até porque, no seu entender, “essas grandiosas produções, muito belas e interessantes [que terão sido as sete maravilhas] talvez tenham sido necessárias num certo período, mas agora temos um outro mundo e desenvolvemos coisas diferentes em conformidade com a visão que temos desse lugar”.

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A existência-fantasma dos edifícios faz com que fiquemos apenas com os corpos que os produzem. E é nesses corpos que Radouan Mriziga quer concentrar a nossa atenção. “O corpo humano será sempre a questão central da minha obra”, garante. “Mesmo que possa transferir a importância para um objecto externo, isso acontecerá sempre de acordo com a perspectiva do corpo humano. Caso contrário, a função de um edifício será apenas a função desse edifício – e não aquilo que o humano coloca lá, como foi pensado ou usado numa certa altura. Isso é que o torna um objecto interessante.”

Um corpo em relação

Não foi complicado a Radouan Mriziga atracar no número 7. “Em todo o Mediterrâneo”, lembra, “era um número extremamente importante porque eram sete os planetas que se conseguiam ver [na Grécia Antiga]”. A importância simbólica do número manteve-se, é recorrente na religião islâmica como no cristianismo, abriga a designação oficiosa de Marraquexe – “também conhecida por cidade dos sete santos”. Ainda que a religião não faça propriamente parte das contas do coreógrafo marroquino, é difícil ignorar o tom de um transe que se diria espiritual do início do espectáculo. Como se o encontro dos sete intérpretes, chegados de partes diferentes, se desse sob a forma de uma oração conjunta.

Mais ainda do que sucedia com 55 ou com 3600, 7 é uma peça feita de um imenso mistério e parece exigir do espectador essa disposição para aceitar a relação com o ausente e com o indizível. Mas, em paralelo, oferece uma enorme beleza em tudo aquilo que esconde, deixando-nos com estes sete corpos que questionam os espaços – a sua dimensão, a sua pertinência actual, a sua utilização – e em que medida homens, mulheres e criações artísticas devem relacionar-se com estas construções mais ou menos monumentais. Mais ou menos destinadas a esmagar os corpos, a mediar relações com o ambiente, a natureza ou a cidade em redor, ou a simbolizar estruturas e posições de poder e ostentação.

Radouan Mriziga refere-se sempre à sua dança como meio de investigação de um papel funcional. Mas mais do que explorar qualquer questão teórica, qualquer discussão intelectual, aquilo que quer é potenciar o seu corpo como a forma mais eficaz e mais inevitável de se relacionar com o ambiente, com a cidade onde vive e com a vida no planeta. Daí que afirme que “tudo é pesquisa”. A toda a hora o corpo estabelece relação com edifícios ou objectos. O olhar de Radouan está sempre focado nesses gestos: de aproximação, afastamento, atracção, medo, respeito, intimidação, curiosidade. Para melhor compreender por onde vai.