Souto de Moura fez uma capela para o Vaticano e tocou o transcendente

A capela de pedra pode ser vista no Pavilhão da Santa Sé na Bienal de Veneza. O arquitecto do Porto dá uma das melhores respostas ao desafio do Vaticano.

Fotogaleria

O Pavilhão da Santa Sé quis contrariar a forma como vemos arquitectura na Bienal de Veneza. Já que esperou 16 anos para participar com um pavilhão próprio, fê-lo em grande estilo e encomendou dez capelas a dez arquitectos internacionais, entre os quais está o português Eduardo Souto de Moura. Foram construídas num parque, numa das ilhas em frente à Praça de S. Marcos, e foi com certeza a inauguração de um pavilhão nacional mais concorrida de Veneza, com tanto público que quando as portas se abriram, já com algum atraso, a comprida alameda que dá acesso às capelas ficou à pinha e parecia que estávamos numa manifestação.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O Pavilhão da Santa Sé quis contrariar a forma como vemos arquitectura na Bienal de Veneza. Já que esperou 16 anos para participar com um pavilhão próprio, fê-lo em grande estilo e encomendou dez capelas a dez arquitectos internacionais, entre os quais está o português Eduardo Souto de Moura. Foram construídas num parque, numa das ilhas em frente à Praça de S. Marcos, e foi com certeza a inauguração de um pavilhão nacional mais concorrida de Veneza, com tanto público que quando as portas se abriram, já com algum atraso, a comprida alameda que dá acesso às capelas ficou à pinha e parecia que estávamos numa manifestação.

Antes, para chegarmos a San Giorgio, foi preciso fazermos uma espécie de peregrinação, uma preparação para o que vamos contemplar, porque a Santa Sé parece mesmo que sabe o que está a fazer nesta bienal: temos de apanhar um vaporetto (o n.º2) até à ilha San Giorgio Maggiore, passar por uma das igrejas de Andrea Palladio, o grande arquitecto de Veneza, e entrar num bosque frondoso, que faz parte do antigo convento beneditino, hoje ocupado pela Fundação Cini.

Além de Eduardo Souto de Moura, um dos dois prémios Pritzker portugueses (o outro é Álvaro Siza), a Santa Sé convidou para o projecto Vatican Chapels os arquitectos Andrew D. Berman (Estados Unidos), Francesco Cellini (Itália), Javier Corvalàn Espìnola (Paraguai), Flores & Prats (Espanha), Norman Foster (Grã-Bretanha), Terunobi Fujimori (Japão), Sean Godsell (Austrália), Carla Juacaba (Brasil) e Smiljan Radic Clarke (Chile).

Francesco Dal Co, curador do Pavilhão da Santa Sé e um velho conhecido da arquitectura portuguesa, sobre a qual se tem debruçado como crítico, evoca com a localização escolhida a famosa Capela do Bosque, feita pelo arquitecto sueco Gunnar Asplund num dos mais belos e mágicos cemitérios europeus, em Estocolmo, onde as campas se espalham entre as árvores.

No fim da alameda frondosa – onde vemos passar Sir Norman Foster e a sua mulher, espanhola, vestidos do mesmo bege-claro (Veneza oblige), as curadoras gerais desta bienal, Yvonne Farrell e Shelley McNamara, com os seus reconhecíveis cabelos loiros e ruivos, e as vestes de um cardeal e dois bispos – a primeira capela que encontramos é a de Souto de Moura, mesmo ao lado da capela da brasileira Carla Juaçaba, – é o melhor da encomenda Vatican Chapels.

Souto de Moura entendeu a evocação de Asplund mais como uma homenagem a propósito de se fazer uma capela num bosque, não tanto como uma referência sobre a qual tinha que trabalhar, disse o arquitecto ao PÚBLICO. O que lhe disse o curador Dal Co é que se tratava de fazer dez capelas para as zonas afectadas pelos terramotos em Itália, como Áquila. “Depois da bienal eram transferidas para dez aldeias. Eu acho que não vão ser. Umas são muito frágeis e a minha é quase impossível mudá-la, porque é toda feita com pedras enormes. É mais barato fazer outra do que mover aquela.”

Quando começou a pensar no projecto, o arquitecto do Porto ainda colocou a hipótese de fazer a capela em betão, mas não chegou a fazer qualquer desenho: “Mas depois visitei uma pedreira com o Dal Co em Vicenza e ele disse-me que eu fazia quase tudo em pedra… Ao princípio tive medo que fosse pretensioso, queria uma coisa mais moderna, pensei num betão pré-fabricado, porque era uma coisa para transferir.”

Como as alminhas

A pedra que veio da pedreira para construir é um calcário mais amarelo do que o lioz de Lisboa. “A capela com a forma de um trapézio é feita com quatro muros e uma porta, que não é mais do que uma pedra que sofre uma rotação. Quando roda para dentro, fica uma porta. Depois, há mais duas pedras que fazem a cobertura. Eu fiz um recinto com muito poucos metros quadrados, o máximo era 70. Isto é como as alminhas, umas capelas muito pequeninas que há no Minho que não têm propriamente culto.”

Se os venezianos podem ver aqui alguma influência de Carlo Scarpa, o mestre da arquitectura moderna de Veneza, Souto de Moura prefere falar de velhas referências arquitectónicas: Machu Picchu, a cidade perdida dos incas no Peru, e o Pavilhão de Barcelona, de Mies van der Rohe, para mostrar como o tempo não é linear em arquitectura.

A encomenda da Santa Sé não pediu aos arquitectos para fazerem um templo cristão. “Tinha apenas de ter uma mesa para pousar um livro.” Mas o que Eduardo Souto de Moura fez foi precisamente uma capela cristã com uma cruz desenhada a partir das juntas das pedras cortadas, a que associou um vinco sulcado na pedra. “O tema do programa era fazer um recinto e ter uma mesa para um livro. Podia ser coberto ou descoberto e não havia mais indicações. Mas eu achei que era preciso ter algum significado, alguma simbologia e, como fui educado no cristianismo, fui buscá-la aí.”

Foto
Eduardo Souto de Moura fez uma capela cristã com uma cruz desenhada a partir das juntas das pedras cortadas, a que associou um vinco sulcado na pedra Atelier Souto de Moura

Já a mesa pedida, o arquitecto entendeu-a como um altar. Fez um cubo escavado por detrás para o padre pôr os pés. “Como se pedia uma pedra para pôr um livro, deduzi que era para fazer uma cerimónia qualquer. Eu fiz um banco para as pessoas se sentarem e uma cobertura para o padre não apanhar chuva.”

Como a capela é muito pequena, Souto de Moura usou um truque para fazer o espaço interior parecer maior. “Para quem entra o pavimento vai a descer até ao altar. Já as pedras crescem a partir do seu ponto mais baixo, que é 2,26 metros, uma referência ao homem com o braço esticado de Le Corbusier. Com esse efeito de perspectiva, conseguimos fingir que é maior.” O banco, que corre a toda a volta, também cresce em altura e transforma-se numa segunda mesa atrás do altar, capaz de permitir expandir a zona de apoio durante a missa.

 Esta não foi a primeira igreja que Souto de Moura desenhou. Há 15 anos fez outra para São João da Madeira que não chegou a ser construída. “Gostei imenso deste desafio do Vaticano. Primeiro, porque pôs em causa algumas convicções que tinha – ou que não tinha –, porque as pessoas têm de fazer um projecto com convicção e eu não sou propriamente religioso.”

Mas, quando acabou a obra, Eduardo Souto de Moura conta que se sentou no banco e sentiu-se bem, como já tinha acontecido com o Museu da Paula Rego em Cascais. Sentou-se para escrever a memória descritiva e voltou a encontrar-se “com a cabeça entre as mãos” com um dos seus alter-egos mais recorrentes, Herberto Helder, que várias vezes já foi citado nestes textos que justificam as opções durante um projecto. “Porque este é um lugar que ajuda a pensar, a reflectir.”

Este arquitecto acha que existe qualquer coisa para além da nossa realidade diária e que há um momento em que lhe conseguimos tocar. “Eu acredito em qualquer coisa, não acredito é na liturgia cristã. Para os miúdos é aquilo que faz com que as estrelas não caiam. Existe uma relação entre objectos e pessoas que ultrapassa a mera realidade pura e dura. Essa coisa é transcendente, claro, porque se não fosse transcendente era a própria realidade.” E crescenta que acredita na moral cristã. “Não conheço outra.”

Uma cruz e um banco

 Mesmo ao lado da capela de Souto de Moura está a obra de Carla Juaçaba, uma arquitecta do Rio de Janeiro, que contrapõe leveza ao peso intemporal da pedra de Souto de Moura – de que o arquitecto já nos tinha falado numa conversa ainda em Portugal. Mas o trabalho da brasileira é igualmente essencial, propondo uma capela ao ar livre composta de uma cruz e um banco.

De facto, o que Carla Juaçaba desenhou foram mesmo duas cruzes em aço inoxidável muito polido, com braços de oito metros,  uma que se mantém na posição vertical e outra que está deitada. Uma das vigas desta última funciona como banco. Com a luz coada do final da tarde, as vigas em aço inox desapareciam, porque eram como um espelho e reflectiam a paisagem. Souto de Moura gostou também da do chileno Smiljan Radic, mas o que o entusiasmou foi mesmo a da brasileira, que também está representada na exposição internacional comissariada pelas irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara.

No lado oposto ao local da capela de Souto de Moura está a capela de Norman Foster – é uma pérgula que mistura high-tech e low-tech, que nos propõe um percurso que acaba num altar. Foster fala-nos de cruzes que se transformaram na estrutura, de um santuário, mas o melhor é mesmo a magnífica vista da laguna, aqui virada para os Giardini, que descobrimos no fim deste oásis.

A Santa Sé e Dal Co deram aos arquitectos “total liberdade”, num lugar marcado apenas pelo bosque e pela laguna, pela abertura à água, diz o comunicado de imprensa da iniciativa Capelas do Vaticano. “Sem nenhuma referência aos cânones comummente conhecidos”, explica Dal Co, citado pelo mesmo comunicado. Um altar e um “lectrem”, o tal sítio para pousar um livro, que Souto de Moura entendeu como uma mesa.

“A escolha dos arquitectos convidados foi baseada na decisão da iniciativa se focar em arquitectos capazes de aplicarem linguagens expressivas diferentes”, justifica a Santa Sé. “Todos nomes fortes do ponto de vista da experimentação construtiva, pertencentes a diferentes gerações, num esforço de ir da Europa, Austrália, Japão aos Estados Unidos e América do Sul.”