Trump cancela cimeira com Kim: "Não é apropriado, neste momento"
Depois de dias em que os insultos de parte a parte regressaram, Trump decidiu cancelar o encontro com o líder norte-coreano, pondo em causa os esforços diplomáticos de meses. Resposta de Pyongyang será crucial. Puxou da sua carta mais alta, confiando que Kim se mantenha em jogo.
Quase da mesma forma surpreendente e abrupta como começou, assim parece ter terminado a lua-de-mel entre Donald Trump e Kim Jong-un que iria culminar numa cimeira histórica em Junho. Após vários dias em que a tensão regressou às declarações de ambos os lados, o Presidente dos EUA decidiu cancelar o encontro, deixando o futuro da Península Coreana mais uma vez em suspenso.
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Quase da mesma forma surpreendente e abrupta como começou, assim parece ter terminado a lua-de-mel entre Donald Trump e Kim Jong-un que iria culminar numa cimeira histórica em Junho. Após vários dias em que a tensão regressou às declarações de ambos os lados, o Presidente dos EUA decidiu cancelar o encontro, deixando o futuro da Península Coreana mais uma vez em suspenso.
Tudo em torno do mais recente episódio do reality-show coreano da Administração Trump assumiu contornos inusitados. Trump, que privilegia as mensagens curtas e directas através do Twitter, decidiu dar conhecimento da sua decisão através de uma carta endereçada directamente ao líder norte-coreano, que saúda como “sua excelência”. Depois de agradecer o “tempo, a paciência e o esforço” devotados às negociações e de dizer que estava “ansioso” pelo encontro entre ambos, Trump assume a ruptura: "Infelizmente, baseado na tremenda ira e na hostilidade aberta demonstradas na sua mais recente declaração, sinto que não é apropriado, neste momento, manter este encontro planeado com tanta antecedência."
Em causa estavam as declarações da vice-ministra dos Negócios Estrangeiros, Choe Son-hui, que chamou o vice-Presidente dos EUA, Mike Pence, de "idiota" e que, de acordo com a CNN, enfureceram Trump e os seus conselheiros mais próximos.
Ao longo da carta, Trump varia entre o lamento, a simpatia e a ameaça. "Vocês falam sobre as vossas capacidades nucleares, mas as nossas são tão maciças e poderosos que eu rezo a Deus para que nunca sejam usadas", escreve a certa altura. No parágrafo seguinte, o tom muda radicalmente e Trump elogia o "maravilhoso diálogo" que marcou os últimos tempos das relações entre os dois países e agradece a libertação dos três cidadãos norte-americanos que estavam detidos no país.
No final da carta, dirigindo-se directamente a Kim, o Presidente dos EUA mantém a porta aberta: "Se mudar de ideias em relação a esta importante cimeira, por favor não hesite em escrever-me ou telefonar-me."
Pouco tempo depois da divulgação da carta, Trump voltou a abordar o tema numa curta declaração em que disse estar “à espera” que Kim reduza a tensão, mas garantiu que as forças militares norte-americanas estão “preparadas caso seja necessário”.
“Tentar perceber o que se passa”
O cancelamento da cimeira Kim-Trump foi lamentado um pouco por todo o mundo, mas causou sobretudo estupefação. O gabinete do Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que dias antes tinha sido recebido por Trump em Washington, parece ter sido apanhado de surpresa. “Estamos a tentar perceber qual é a intenção do Presidente Trump e qual é o seu significado exacto”, disse o porta-voz Kim Eui-kyeom. Já passava da meia-noite em Seul quando Moon convocou o gabinete de crise. No final da reunião, o líder sul-coreano, que tem agido como uma espécie de pivô da paz entre Washington e Pyongyang, pediu “conversações directas” entre Trump e Kim.
Em Genebra, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar “profundamente preocupado” e deixou um apelo a todas as partes para que regressem à via do diálogo.
“As expectativas para a cimeira com a Coreia do Norte eram desmesuradas e há razões legítimas para se questionar se Kim Jong-un encara com seriedade abrir mão das suas armas nucleares, mas a carta de Trump é uma reacção exagerada e ignora o papel que os dirigentes de topo tiveram ao provocar esta crise”, disse ao Guardian a directora da Associação de Controlo de Armamento, Kelsey Davenport.
Na última semana, o clima de entendimento entre os EUA e a Coreia do Norte – que surpreenderam o mundo ao concordar numa cimeira inédita entre líderes – foi substituído por um regresso às trocas de insultos e ameaças, que tradicionalmente caracterizaram as relações entre ambos. As diferenças de interpretação sobre o significado de uma “desnuclearização”, a pedra-de-toque das negociações, assumiram finalmente o seu peso.
Washington quer ver passos concretos e imediatos por parte do regime norte-coreano que mostrem o desmantelamento total das instalações que integram o programa nuclear e uma verificação internacional rígida. Mas, para Pyongyang, a posse de mísseis com capacidade nuclear e com um largo alcance são um sinónimo de segurança do regime – a sua estratégia assenta sobretudo numa desnuclearização mais gradual, acompanhada de gestos recíprocos por parte dos EUA, como apoio económico, um tratado de paz e até um pacto de não-agressão.
Um dos pontos de mais acesa discussão são as comparações entre a Coreia do Norte e a Líbia. Em 2003, o regime de Muammar Khadafi abriu mão do seu programa nuclear, que ainda estava numa fase embrionária, a troco de um alívio das sanções económicas. Anos depois, os EUA lideraram uma intervenção militar da NATO de apoio aos rebeldes que acabou por derrubar o general – e levar à sua execução. Pyongyang tem usado este exemplo para justificar a sua desconfiança em negociar o seu próprio armamento nuclear.
Numa entrevista à FOX News, Mike Pence – tal como o conselheiro para a Segurança Nacional, John Bolton, dias antes – avisou a Coreia do Norte que poderia “acabar como a Líbia” se não chegasse a acordo com Trump. Estas declarações motivaram uma reacção muito dura por parte da “número dois” do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que, por fim, serviu como justificação para o cancelamento da cimeira.
Apesar da acrimónia dos últimos dias, o calendário diplomático que tinha sido acordado após a cimeira entre os líderes das duas Coreias estava a ser cumprido. Ainda esta quinta-feira, a Coreia do Norte desmantelou o local onde foram realizados os testes nucleares, em Pungyye-ri, sob o olhar de um grupo de jornalistas estrangeiros.
A decisão de Trump volta a deixar a Península Coreana num ambiente de forte tensão, mas traz consigo sobretudo muitas dúvidas. Desde logo, se a cimeira está realmente fora do horizonte. A carta de Trump deixa uma porta aberta caso Kim “mude de ideias” e adopte um discurso mais conciliador. Um encontro com o Presidente dos EUA foi sempre um dos grandes objectivos do regime norte-coreano. Mas caso o processo descarrile definitivamente e a tensão regresse à região, potencialmente com novos testes nucleares e outras demonstrações de força, que outros instrumentos restam a Trump?