Uma canção como consolo e desconforto para Sofia Dinger

Uma Canção para Ver-te Chegar é um espectáculo criado por Sofia Dinger que começa pelo canto de pássaros e viaja através do luto. De quinta a sábado, ocupa o Teatro Maria Matos, Lisboa, integrada no Alkantara.

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Na primeira de duas visitas que a actriz e criadora Sofia Dinger fez à artista Rimah Jabr na Palestina, os sons que logo de lhe captaram a atenção (às cinco horas da madrugada) foram os pássaros que cantavam na proximidade. Na altura, estava ainda longe de saber que esse encontro, há dois anos, havia de ser um primeiro impulso para a criação da peça que estreia esta quinta-feira, Uma Canção para Ouvir-te Chegar (citação de um poema de Mário Cesariny), que Dinger apresenta até sábado no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Festival Alkantara.

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Na primeira de duas visitas que a actriz e criadora Sofia Dinger fez à artista Rimah Jabr na Palestina, os sons que logo de lhe captaram a atenção (às cinco horas da madrugada) foram os pássaros que cantavam na proximidade. Na altura, estava ainda longe de saber que esse encontro, há dois anos, havia de ser um primeiro impulso para a criação da peça que estreia esta quinta-feira, Uma Canção para Ouvir-te Chegar (citação de um poema de Mário Cesariny), que Dinger apresenta até sábado no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Festival Alkantara.

Rimah Jabr (autora de Infini#5, outro espectáculo programado pelo Alkantara) é uma presença constante nesta criação de Sofia Dinger. Mas nunca a vemos, nem a ouvimos. “Ela é um fantasma vivo muito importante e muito querido nisto tudo”, diz a criadora ao PÚBLICO. Rimah está nas escolhas artísticas, no estabelecimento de uma correspondência que alimenta Uma Canção…, na invocação de um luto que assume várias formas. De certa forma, aquilo que Sofia Dinger vai tecendo lentamente – numa espiral que avança, pouco a pouco, por um texto que se completa num loop em que ouvimos os risos nervosos, a tentativa de estancar o choro ou as palavras da actriz a acumular-se – é uma procura pela sua interlocutora. Ou não tivesse Sofia percebido que, “para algumas pessoas, estar presente é um assunto tão mais complexo do que uma decisão pessoal”. Mas esta canção é também, acrescenta, uma procura por respostas que possa arrancar a si mesma.

Se foram pássaros que Sofia Dinger escutou no primeiro contacto com a Palestina, são também pássaros que nos dá a ouvir durante os minutos iniciais de Uma Canção para Ouvir-te Chegar. É pela música que a peça começa e Sofia imita sons de pássaros até ganhar coragem para usar a palavra – replicando aquele que foi o seu processo de luto pessoal, em que, depois de uma fase de recolhimento, cada frase lhe parecia uma questão de vida ou de morte, um incalculável potencial de enormes consequências. A música, nessa fase, teve a forma de consolo. E foi por isso que quis avançar por aí. “Mas teria de ser um sítio de consolo que fosse necessariamente também um sítio desconfortável”, ressalva. “Não acredito em fazer nada em palco que não seja desconfortável. Se não for difícil não encontro uma motivação. Por isso teria de ser alguma coisa em que soubesse que seria muito fácil falhar.”

Falhar, neste contexto, significa sobretudo colocar-se numa zona de risco. Mas um risco assistido. Para a ajudar a desenvencilhar-se numa construção musical, desde logo devido a essa imagem inicial que é imitar o canto de um pássaro, Sofia Dinger socorreu-se da colaboração do saxofonista Rodrigo Amado. “O Rodrigo é da música improvisada e eu queria trabalhar com alguém que me ajudasse a construir possibilidades de ser livre dentro de uma estrutura”, justifica a actriz. “Acho que é isso que procuro muito no trabalho e na vida: essa possibilidade de expandir.”

Morte e amor

Uma Canção para Ouvir-te Chegar é, mais uma vez, uma peça com uma escala íntima – assim o era também a anterior criação de Sofia, A Grande Ilusão (que estabelecia uma relação real e, ao mesmo tempo, fantasiosa com Jean Renoir), ou muito do seu trabalho como intérprete, de que é exemplo Dois Actores e Um Fantasma, de Rui Catalão. Mas uma intimidade que se abre não apenas à presença de Rimah Jabr e de Rodrigo Amado, mas também, e de forma mais evidente no desenrolar da peça, ao cineasta Jonas Mekas, à jovem holandesa judia Etty Hillesum (cujos diários durante a ocupação alemã durante a II Guerra Mundial atravessam o texto) ou a música de Franz Schubert.

Sofia Dinger quis pensar esta criação como um poema, como uma canção. Sem se deixar aprisionar por uma narrativa linear, antes se entrega em palco a uma espiral em que ao repetir, por vezes, as mesmas palavras com um intervalo de três minutos (a duração do loop que vai acumulando as camadas da sua voz e do “canto dos pássaros”) podem querer dizer coisas diferentes. “E às vezes”, acrescenta, “temos de repetir algumas destas palavras a nós mesmos para se tornarem verdade ou para percebermos que são mentira.”

Atravessada sempre por uma ideia de luto, que foi uma surpresa para a própria Sofia Dinger, a peça acolhe um luto que diz respeito “àquilo que está a acontecer agora na Palestina, àquilo que acontece a Etty Hillesum” e ao seu luto pessoal. “As lágrimas que choro em palco não são só minhas”, diz. E não são apenas de sofrimento. Porque esta canção, diz Sofia Dinger, “não tem que ver com a negação da morte, mas sim com a forma como se escolhe viver a morte”. “A morte e o amor”, corrige, lembrando-se que a primeira não apaga o segundo.