Retrato do artista enquanto extraterrestre
Godard? É apenas a caução de Michel Hazanavicius para filmar rabos de raparigas com caução.
Mesmo sem se ter visto o último filme de Jean-Luc Godard (Le Livre d’Image) recentemente apresentado em Cannes, é fácil ver no prémio que ele ganhou (a Palma de Ouro “especial”) um reflexo sintomático da dificuldade de lidar com ele e com o seu cinema: ele é como os outros mas não é bem “como os outros”, os seus filmes medem-se com os outros filmes mas não são bem como os outros filmes, remetidos (mesmo quando a ocasião é a de um prémio “máximo”) para uma espécie de universo paralelo, um universo “especial”, desligado do fluxo da “contemporaneidade” representado pelo palmarés oficial (é claro que se pode ver nesta decisão uma auto-defesa do juri, uma forma de evitar as críticas que choveram quando, por Adeus à Linguagem, Godard recebeu um prémio ex-aequo com Xavier Dolan, mas até esse episódio reforça a questão: como, onde, arrumar Godard no caudal do cinema contemporâneo?).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Mesmo sem se ter visto o último filme de Jean-Luc Godard (Le Livre d’Image) recentemente apresentado em Cannes, é fácil ver no prémio que ele ganhou (a Palma de Ouro “especial”) um reflexo sintomático da dificuldade de lidar com ele e com o seu cinema: ele é como os outros mas não é bem “como os outros”, os seus filmes medem-se com os outros filmes mas não são bem como os outros filmes, remetidos (mesmo quando a ocasião é a de um prémio “máximo”) para uma espécie de universo paralelo, um universo “especial”, desligado do fluxo da “contemporaneidade” representado pelo palmarés oficial (é claro que se pode ver nesta decisão uma auto-defesa do juri, uma forma de evitar as críticas que choveram quando, por Adeus à Linguagem, Godard recebeu um prémio ex-aequo com Xavier Dolan, mas até esse episódio reforça a questão: como, onde, arrumar Godard no caudal do cinema contemporâneo?).
Vem esta introdução a propósito do filme de Michel Hazanavicius, que, à sua maneira (em grande parte involuntária e desajeitada), reflecte a mesma questão, a da relação de Godard com o cinema contemporâneo ou, porque a ordem dos factores não é no caso arbitrária, do cinema contemporâneo com Godard (o Godard “pessoa” e o Godard “ideia”, se assim se pode dizer). Godard, o Temível inspira-se no livro autobiográfico de Anne Wiazemsky (Un An Après) em que ela contou os anos do seu relacionamento com Godard, anos que corresponderam a um período crítico no percurso do cineasta: o choque com o Maio de 68, a intensa politização que já vinha de trás e que esse choque reforçou, a vontade de reinventar a prática do cinema de alto a baixo, a partir de uma perspectiva intrinsecamente política, que culminou com o “desaparecimento” do Godard no seio do Grupo Dziga Vertov e continuou ao longo dos anos 70 na sua produção marginal e “experimental”, desligada de qualquer forma canónica de produção. O fim do Godard “festivo”, “pop” e “superstar” que fora uma das mais efusivas faces da Nouvelle Vague na primeira metade dos anos 60.
Há dois planos, portanto, em que o filme se joga. O primeiro, a espécie de comédia conjugal que inventa uma intimidade (não importa com quanta fidelidade documental) para as personagens de Godard (Louis Garrel) e Wiazemsky (Stacy Martin) — e insistimos, “personagens”, porque há nelas uma maleabilidade de cartoon, uma superficialidade que (quase) as autonomiza dos seus referentes da vida real, e que portanto num certo sentido as “redime”. Tivesse Hazanavicius um décimo do talento de um Tashlin e podia ser divertido como uma screwball em desenho animado. Como não tem, é só disparatado, mesmo que o disparate até possa pontualmente fazer rir ou sorrir.
E o segundo plano, o de uma comédia “estética” ou “ideológica”, que tem a ver com a convulsão do pensamento de Godard sobre o cinema e sobre a política. É aí que o filme não tem remissão. De Hazanavicius não se esperaria “empatia”, mas o certo é que Godard, O Temível revela apenas incompreensão. O seu Godard, é neste plano, filmado como um extraterrestre que diz coisas bizarras e tem ideias estranhas. Nenhuma vontade, ou capacidade, de ir ao encontro dele, de superar essa superfície de estranheza. E com Godard vão a época, as preocupações da época, a História da época, tudo tratado como uma sucessão de caprichos também eles incompreensíveis, numa insensibilidade total (assim se esboroando, por exemplo, o desenho de Godard como figura de solidão, naquele momento em que é apupado no plenário de estudantes e percebe que, para eles, ele também é um “velho”, ele também é “o poder” — e citamos este momento porque é um dos poucos em que se tem a sensação, ilusória, de que o filme vai “agarrar” alguma coisa que seja significativa).
No fundo, não estamos muito longe do universo de O Artista. Como fazia para o tempo do cinema mudo, Hazanavicius recusa terminantemente o reconhecimento da maioridade das personagens que povoam os mundos que filma, e em Godard, O Temível encontramos o mesmo tipo de crianças grandes, ingénuas e caprichosas, que protagonizavam o seu olhar sobre a Hollywood dos anos 20. Não surpreende, portanto, que o filme seja pueril até à quinta casa, inclusive naquilo que vai pilhar (“citar”) ao cinema de Godard: repare-se na quantidade de grandes planos do rabo de Stacy Martin, “legitimados” pelos planos do rabo de Bardot em O Desprezo. A resposta prática de Hazanivicius à questão que expusemos a abrir o texto não anda longe de ser esta: Godard? Serve para filmar rabos de raparigas com caução. É um pouco triste.