As políticas educativas não são neutras: a propósito de um texto de David Justino
Para Justino e Nuno Crato, a avaliação é um meio de seleção e, sejamos claros, de exclusão.
No passado dia 1 de maio foi publicado um texto de opinião de David Justino acerca das atuais políticas educativas em que se fazem afirmações não fundamentadas, ignorando-se conhecimento crítico produzido no domínio da avaliação educacional e da educação. Acho que tal omissão não foi casual. Também não foi por acaso que, ao opinar acerca de políticas públicas de educação nos últimos 15 anos, o autor tenha ignorado as que foram postas em prática nos XV, XVI e XIX governos constitucionais (coligações PSD-CDS), em que os responsáveis da pasta da Educação foram, respetivamente, David Justino, Maria do Carmo Seabra e Nuno Crato.
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No passado dia 1 de maio foi publicado um texto de opinião de David Justino acerca das atuais políticas educativas em que se fazem afirmações não fundamentadas, ignorando-se conhecimento crítico produzido no domínio da avaliação educacional e da educação. Acho que tal omissão não foi casual. Também não foi por acaso que, ao opinar acerca de políticas públicas de educação nos últimos 15 anos, o autor tenha ignorado as que foram postas em prática nos XV, XVI e XIX governos constitucionais (coligações PSD-CDS), em que os responsáveis da pasta da Educação foram, respetivamente, David Justino, Maria do Carmo Seabra e Nuno Crato.
Bem sei que o texto foi escrito na qualidade de vice-presidente do PSD, mas, ainda assim, o seu autor não deixa de ser um professor e investigador universitário, por quem tenho consideração, preparado para que o seu trabalho académico e a sua reflexão obedeçam a elevados padrões de rigor intelectual. Logo, perante as considerações que faz, penso que David Justino foi traído pela sua ideologia. Digo “traído”, pois, pelos vistos, para este vice-presidente do PSD, as políticas públicas de educação devem ser “à prova” de ideologia(s) — ou seja, parece estar a querer dizer-nos que a sua singular decisão, enquanto ministro, de introduzir os rankings das escolas ou a decisão de Nuno Crato de introduzir exames nos 1.º e 2.º ciclos do ensino básico não foram ideológicas!
É óbvio que as medidas que ambos tomaram foram baseadas numa ideologia que os leva a considerar que a avaliação deve ser uma espécie de processo depurativo que, por exemplo, determine o percurso académico das crianças logo a partir dos nove ou dez anos de idade. Daí o repúdio que tanto um como outro manifestaram quando se aboliram os exames nos primeiros anos de escolaridade para os substituir por provas cujo mais fundamental propósito consiste em apoiar as escolas, os professores, os estudantes e as famílias no desenvolvimento de mais e melhores, mais profundas, aprendizagens. Na verdade, para Justino e Crato, a avaliação é um meio de seleção e, sejamos claros, de exclusão. Para outros, a avaliação é um processo eminentemente pedagógico, intrinsecamente associado ao ensino e à aprendizagem, que orienta professores e alunos nas suas missões de ensinar e aprender. Ao contrário do que defendem aqueles dois ideólogos das políticas de direita para a Educação, a investigação e o conhecimento produzido têm mostrado que não há qualquer relação entre a introdução de exames nos primeiros anos do ensino básico e a melhoria da qualidade da educação. Na verdade, quem estuda há décadas a questão das avaliações externas, nomeadamente os exames e os seus efeitos, já mostrou fundamentadamente que a sua utilização está associada a mais desvantagens do que vantagens. Um dos seus mais nefastos efeitos é o chamado “empobrecimento” ou “afunilamento do currículo”, decorrente de os esforços de ensino dos professores estarem exclusivamente orientados para o tipo de questões que pode sair nos exames. São muitos os resultados da investigação que David Justino ignorou e que contrariam frontalmente as suas opiniões e a sua ideologia. (Vejam-se, por exemplo, os últimos trabalhos de George Madaus.) Não se entende, por isso, que venha afirmar, em jeito de crítica, que as atuais políticas educativas são de “caráter ideológico”. Claro que são e serão sempre. Ou há políticas públicas de educação neutras, asséticas, sem quaisquer visões acerca da vida social, da educação e das escolas?
Quando se aposta na utilização de provas aferidas cujos resultados se destinam a melhorar o ensino e as aprendizagens, está a fazer-se uma opção ideológica pela inclusão, pela aceitação e respeito pelas diferenças, pelo reconhecimento da capacidade das escolas e dos seus professores para gerirem o currículo de formas diferenciadas e mais adequadas para todos e para cada um dos seus alunos. Uma opção por uma política democrática com preocupações sociais. Uma opção pela igualdade de oportunidades, com equidade nas aprendizagens e nos resultados.
David Justino defende a existência de exames nos 4.º e 6.º anos de escolaridade baseado exclusivamente nas suas (legítimas) convicções ideológicas e ignorando o conhecimento. Por isso decidiu recorrer à demagogia mais primária pondo na boca de quem tem outro pensamento, outra ideologia, afirmações que nunca foram proferidas tais como “não se deve estudar para os exames” ou “a memorização, a repetição e o treino” são ideias ultrapassadas que devem ser banidas e demais dislates desta natureza. É óbvio que o mais importante é que os alunos aprendam a pensar e a resolver problemas complexos, mas nunca ninguém dirá que não é importante memorizar ou fazer exercícios rotineiros para familiarizar as crianças com determinados procedimentos. E também nunca ninguém dirá, no caso de existirem exames, que não se deve estudar para esses mesmos exames ou que os professores não devem preparar os alunos para a sua realização. Só por indesculpável distração ou pouca seriedade intelectual se pode dizer que as políticas destes últimos dois anos e meio provocaram maus resultados nas primeiras provas de aferição. É pouco curial que se faça uma afirmação que se sabe muito bem que não pode ser verdadeira. Basta pensar que as crianças que fizeram essas provas já estavam na escola quando se deram modificações, autênticas aberrações, introduzidas pelo anterior Governo nos domínios da Matemática e da Língua Portuguesa. Ainda assim, dificilmente poderemos estabelecer relações de causa e efeito. O mesmo pode ser dito em relação aos jovens de 15 anos que irão fazer os testes do PISA este mês e que entraram para a escola há cerca de nove ou dez anos.
Falar na “cartilha” da OCDE é realmente desconhecer ou desprezar o que em Portugal foi conseguido e se continua a conseguir, pela iniciativa de programas que foram sendo sucessiva e continuamente lançados após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) em 1986. O que é que a OCDE teve que ver com o PIPSE ou com o Projeto Minerva ou com os TEIP ou com o Plano Nacional de Leitura e o Programa das Bibliotecas Escolares ou com o Ciência Viva ou com o Programa Turma Mais? Todos estes programas e muitos outros terão, com certeza, algo que ver com as substanciais melhorias da educação em Portugal ao longos das últimas décadas. E foram o resultado de um entendimento político mais ou menos tácito em torno de princípios fundamentais consagrados naquela lei. Só no período em que o compagnon de route de David Justino, Nuno Crato, dirigiu o Ministério da Educação é que houve uma rutura com o entendimento que sempre existiu em torno de tais princípios. Por razões ideológicas, obviamente.
Não sei se David Justino tem problemas com a OCDE, ou se o incomoda o facto de setores ligados à educação desta organização reconhecerem os surpreendentes, quase inacreditáveis progressos que Portugal fez no domínio da educação nos últimos 40 anos. Francamente, não me incomoda que venha cá quem quer que seja daquela organização para debater as nossas políticas educativas e a visão que temos para o futuro da educação e da formação. O que me incomodava imenso era quando não vinha cá ninguém, quando Portugal era apontado pelas piores razões, como aconteceu durante demasiado tempo. Por último, fico igualmente surpreendido com o facto de se questionarem medidas de política porque não foram feitas as devidas avaliações. Eis uma inusitada paixão pela avaliação! Mas, a propósito, tem de se perguntar: que avaliação foi feita para introduzir os rankings em 2002? E para introduzir os exames nos 1.º e 2.º ciclos do ensino básico em 2012/2013? E para abolir os programas de Matemática do ensino básico em 2013? Basta pensar-se nestas três medidas, cujo único fundamento foi o ideário da direita política, para se perceber que só se reclama por avaliação quando dá algum jeito.
Temos de continuar a abrir caminhos para que o conhecimento, a lucidez e o discernimento estejam sempre presentes no debate aberto e democrático acerca do bem público que é a educação. A consolidação de uma democracia social e economicamente mais justa no nosso país é indissociável da ideia de uma educação, de um currículo, de uma pedagogia como projeto de conhecimento e de inteligência, que deve mobilizar as escolas, os seus professores, os seus alunos e respetivas famílias. E, obviamente, largos setores da sociedade portuguesa. Parece-me importante prosseguir esses esforços, que têm estado presentes nas atuais políticas públicas de educação, assim como me parece importante perceber-se que as políticas educativas não são neutras.