O Estado iníquo do povo justo e a embaixada fora da lei
Israel nasceu torto e por este andar não vejo como alguma vez se vai endireitar.
Bastaria Jesus Cristo, que era judeu, e ao enunciar a igualdade inventou o humanismo, para adjectivar de justo o povo judeu. Mas o reino de Cristo era de outro Mundo. Também poderia bastar o contributo que o povo judeu deu, em todos os campos, para a civilização dita ocidental. Mas é sobretudo a perseguição odiosa, infame e insuportável de que foi objecto ao longo da História por parte desse mesmo ocidente cristão, e bem assim a resistência sublime que lhe soube opor, que me leva a querer apodar os judeus de povo justo. O que me leva a sentir sufocado pela injustiça que a política do Estado de Israel faz à sua memória e aos valores humanistas que são a marca do sofrimento dos judeus e da revolta que com eles partilhamos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Bastaria Jesus Cristo, que era judeu, e ao enunciar a igualdade inventou o humanismo, para adjectivar de justo o povo judeu. Mas o reino de Cristo era de outro Mundo. Também poderia bastar o contributo que o povo judeu deu, em todos os campos, para a civilização dita ocidental. Mas é sobretudo a perseguição odiosa, infame e insuportável de que foi objecto ao longo da História por parte desse mesmo ocidente cristão, e bem assim a resistência sublime que lhe soube opor, que me leva a querer apodar os judeus de povo justo. O que me leva a sentir sufocado pela injustiça que a política do Estado de Israel faz à sua memória e aos valores humanistas que são a marca do sofrimento dos judeus e da revolta que com eles partilhamos.
Israel nasceu torto e por este andar não vejo como alguma vez se vai endireitar. O terrorismo foi um dos vectores da criação do Estado de Israel, juntamente como um efectivo lobby político e o justificado sentimento de culpa por parte dos europeus, culpados do crime repugnante da perseguição milenar aos judeus que atingira a infâmia total com o Holocausto.
Como também à irresponsável tibieza do governo britânico que, mais uma vez, brincou aos deuses ao decidir o destino das suas colónias. Tirou literalmente das suas casas cerca de 800 mil árabes que lá viviam para nelas colocar judeus. Literalmente, insisto. Ouvi discussões entre palestinos nascidos em Jerusalém e judeus, nascidos na Bulgária ou na Polónia, que ocupavam a casa daqueles.
Seguramente era justo, após todo o sofrimento infligido aos judeus, procurar-lhes uma terra onde pudessem construir a sua pátria e aí viver em segurança. O problema é que foi escolhido um território ocupado por outro povo e assim se criou, artificialmente, mais uma disputa entre dois povos pelo mesmo território.
A decisão das Nações Unidas passou pela criação, nesse território, de dois Estados, com Jerusalém dividida sob a autoridade internacional. Os árabes não aceitaram essa solução, pois, como disse Ben-Gurion, primeiro primeiro-ministro de Israel, se fosse palestino também não aceitaria negociar entregar a sua terra aos judeus, pois não foram eles que os expulsaram de Israel, não é deles o Deus que prometera Israel aos judeus e não tinham sido os árabes que haviam perseguido os judeus e perpetrado o Holocausto.
A oposição árabe não foi, porém, suficiente para impedir a criação do Estado de Israel, nem a expulsão dos 800 mil palestinos que ainda hoje vivem em campos de refugiados, verdadeiros viveiros de ódio, que foram contaminar os países vizinhos, alguns dos quais passaram a ser teatro de guerras alheias.
Se ainda hoje se fala dos dois Estados como solução para o problema do Médio Oriente, a verdade é que a sucessão de guerras, a ocupação por Israel da margem ocidental e o sucessivo estabelecimento estratégico de colonatos israelitas ilegais inviabiliza, na prática, a criação ali de um Estado palestino.
Israel não se coibiu de conduzir esse processo em arrogante desafio ao Direito internacional e ignorando as sucessivas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É, aliás, impressionante a lista dessas resoluções que Israel não cumpriu.
No final dos anos setenta, após várias guerras, o processo de consolidação da posição de Israel nos territórios ocupados e o início da criação dos colonatos estava em pleno progresso.
Em Junho de 1980, preocupado com a denúncia de que Israel estava a preparar legislação para alterar o estatuto da Cidade Santa, o Conselho aprovou a resolução 476, que reafirmou a condenação da aquisição de território pela força e a inalterabilidade do estatuto de Jerusalém. Com a sua habitual indiferença perante a lei e a justiça, o governo de Israel aprovou logo a seguir a anexação de Jerusalém Leste.
Portugal ocupava então, pela primeira vez, um lugar no Conselho de Segurança e eu, no primeiro posto da minha carreira, integrava a delegação portuguesa, onde tinha, sob a orientação elucidada do embaixador Leonardo Mathias, a questão do Médio Oriente. No dia seguinte à anexação andava eu pelos passos perdidos das Nações Unidas, onde a deliberação israelita tinha naturalmente provocado grande alvoroço e se discutia um violento projecto de resolução, apresentado pelo grupo árabe, em resposta a essa flagrante infracção da legalidade. Com a ajuda do sr. Ascenção, funcionário permanente da nossa Missão, que conhecia a ONU como as mãos dele, fomo-nos dando conta que apesar do clima de justa e radicalizada indignação, havia entre os árabes quem tivesse a percepção de que seria mais vantajoso, para a causa palestina, tentar obter uma resolução moderada, do que apresentar o tal projecto que garantia o veto americano, visto que a política americana para o Médio Oriente é refém da política delinquente de Israel.
A delegação portuguesa era chefiada pelo embaixador Vasco Futscher Pereira, o mais distinto embaixador da sua geração, que ocupava, nesse mês de Agosto de 1980, a presidência do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. Ao fim da tarde, o embaixador reunia os membros da delegação no gabinete da presidência no próprio edifício da ONU. Fui para essa reunião com o intuito de transmitir a ideia de que seria possível conseguir aprovar, na nossa presidência, uma resolução moderada. Mas o embaixador estava furioso, o que era nele muito raro, com a reacção dos árabes, não ligou muito aos meus argumentos e disse que não tencionava tomar qualquer iniciativa nesse sentido.
Fui para casa cabisbaixo, pois estava absolutamente convencido de que, como aliás se veio a verificar, haveria condições para aprovar uma resolução e estávamos a perder uma ocasião única para que a nossa presidência granjeasse o reconhecimento da quase (Israel) unanimidade dos membros das Nações Unidas.
No dia seguinte de manhã, estava eu desanimado no meu gabinete quando o embaixador Futscher irrompe por ali a dentro e me manda ligar para o embaixador Terzi, representante da OLP junto da ONU. Eu ainda esbocei a minha surpresa face ao dia anterior, mas Futscher diz-me “deixa-te de coisas e faz o que te digo”, o que fiz com entusiasmo. E convocou para essa tarde, já com o acordo dos palestinos, um reunião com os cinco membros ocidentais do CS (além de nós e dos três permanentes, a Noruega) e o embaixador da Tunísia, país moderado e também membro do CS.
Foi uma reunião dura, longa e fascinante. Os americanos enviaram à reunião um diplomata sénior, que logo que chegou se sentou com os braços cruzados e um ar contrariado que parecia querer manifestar distância em relação à posição que foi defendida pelo colega da Missão americana que o acompanhava. Este era nada mais, nada menos que um advogado judeu (!). Foi com ele que durante horas prosseguiu a discussão com os restantes membros ocidentais do Conselho. A certa altura, Futscher sai por um momento da sala. Um pouco depois de ele regressar entra uma secretária que vai dizer ao embaixador da Tunísia que havia um telefonema para ele. Mal o tunisino sai, redobra a pressão para o americano ceder e aceitar não vetar o projecto de resolução que lhe tínhamos apresentado e estava a ser discutido. Passada uma boa meia hora, Futscher chama-ma e diz-me “vai ter com o tunisino, que deve estar farto de estar à espera”. Então mas ele não está ao telefone?, pergunto eu. “Não, fui que inventei isso para podermos ser mais veementes com o americano.” E foi assim que alcançámos o desfecho que pretendíamos, só possível graças à brilhante perícia diplomática de Futscher Pereira.
Foi assim aprovada, na presidência portuguesa de Agosto de 1980, a resolução 478, que sancionava e considerava nula e de nenhum efeito pela lei internacional a anexação por Israel de Jerusalém Leste e pedia aos países que ainda tinham embaixada em Jerusalém para a retirarem para Telavive. Resolução que agora os Estados Unidos vêm contrariar, violando a lei internacional e cedendo à política de força e discriminação étnica que Israel insiste em prosseguir e me surpreende como a menos adequada para honrar a memória dos judeus que foram perseguido ao longo da História e que pereceram na ignomínia do inferno do Holocausto.