Philip Roth deixou a morte escrita
O escritor é um sedutor e o leitor a sua presa. Com Philip Roth passa-se mais ou menos isto. Morreu aos 85 anos e deixou uma obra que ganhou tudo menos o Nobel. Nela diluiu a fronteira entre real e ficção ao ponto de se perguntar: quem é Roth?
Tudo pode começar assim: descrever “de forma tão tentadora a sopa de tomate quente da tua mãe”. Pode estar aí o princípio do paradoxo da sedução. Um dia, quando se conheceram, Philip Roth contou a Margaret Martinson como a mãe, sempre que ele chegava da escola, mexia a sopa de tomate no fogão da cozinha onde viviam num bairro judeu de Newark.
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Tudo pode começar assim: descrever “de forma tão tentadora a sopa de tomate quente da tua mãe”. Pode estar aí o princípio do paradoxo da sedução. Um dia, quando se conheceram, Philip Roth contou a Margaret Martinson como a mãe, sempre que ele chegava da escola, mexia a sopa de tomate no fogão da cozinha onde viviam num bairro judeu de Newark.
Pouco importava se era uma sopa Campbell, porque toda a atenção se centrava no modo de contar. Margaret ouviu e tornou-se a sua primeira mulher. O casamento durou pouco e Margaret morreu muito jovem num acidente de carro no que seria um dos acontecimentos mais traumáticos da vida de Roth.
O episódio vem relatado em Os Factos, autobiografia de um romancista (original de 1988, publicado em Portugal pela D. Quixote que edita o autor em Portugal), e Roth levanta a hipótese de a conquista ter acontecido por causa da narrativa da sopa, o que o leva a outra conclusão: a culpa de toda a tragédia foi dele. No livro, Margaret aparece com o nome de Josie. Foi ela a mulher que o ouviu e ficou presa a ele do mesmo modo que muitos leitores ficaram presos à sua literatura. Tragédia à parte, todos serão presas dessa “forma tão tentadora de narrar”. É o paradoxo da sedução aplicado a Philip Roth. Faz-nos sofrer, mas sem isso a vida teria muito menos graça, e se há um culpado nisto é ele, que tornou cada leitor num cúmplice.
É uma história, mas a notícia da morte de Philip Roth surge embrulhada em toda a sua literatura. O escritor morreu esta quarta-feira, 23 de Maio, aos 85 anos num hospital de Manhattan, na sequência de falha cardíaca, e é como se ele já tivesse escrito tudo sobre essa morte. Nos últimos anos da sua escrita, entre o desaparecimento de familiares e amigos, a sua própria fragilidade física, várias doenças, a morte tornou-se um grande tema. Era essa, aliás, a única vantagem da mortalidade, chegou a dizer: trazer-lhe um assunto novo. E escreveu profusamente sobre o tema em O Fantasma sai de Cena, O Animal Moribundo e nos quatro últimos romances breves onde junta, de forma devastadora sexo e mortalidade: Todo-o-Mundo (2006), Indignação (2008), A Humilhação (2009) ou Némesis (2010).
Interrogado sobre o que estes quatro livros tinham em comum ele respondeu: o cataclismo.
E quando achou que já tinha escrito tudo, até sobre a morte, parou de escrever. Foi em 2010, quando saiu Némesis, o último romance, escrito entre muito sofrimento e um final épico que ele, e só ele, sabia que continha as suas últimas palavras enquanto romancista.
Por tudo isto a morte de Philip Roth tornou-se literária antes de ser real e o melhor dos seus obituários está nas centenas de páginas onde ele exercitou, num equilíbrio tão precário quanto estimulante, a fina membrana entre realidade e ficção com várias alusões à sobrevivência da memória após a morte, por um lado, e uma espécie de proximidade que pode inquietar. Basta recordar, por exemplo, a grande intimidade que Mickey Sabbath, protagonista de O Teatro de Sabbath (1995), e um dos alter-egos de Roth, tinha com a morte, no entanto, num momento em que ainda a podia vencer graças ao sexo.
Roth escrevia ficção na primeira pessoa e iludia. Nunca era ele quem morria, mas era sempre ele a morrer, como não foi ele o Alexander, de O Complexo de Portnoy (1969), e nem por isso alguém deixou de procurar o jovem Philip no rapaz obcecado com a sua sexualidade e revoltado com a vida no tal bairro puritano judeu de Newark, numa família conservadora que não era a de Roth, mas na qual todos quiseram ver a de Roth. O escritor chegou a contar ao New York Times que nessa altura convidou os pais para almoçar em Nova Iorque, onde já vivia; queria avisá-los de que iria haver confusão entre o romance e a vida e soube mais tarde que, no regresso a casa, a mãe chorou. Não por temer ser confundida com a família do livro, mas por achar que o filho sofria de mania das grandezas.
Foi aí, com o eu de O Complexo de Portnoy, o seu quarto romance, que começou o jogo que Philip Roth nunca deixaria de jogar: o de saber que por detrás do eu que narrava estaria, voluntariamente ou não, o eu que escrevia e que o seu maior trunfo para gerir este ardil seria o bom uso da imaginação.
“A imaginação é tudo o que um escritor tem”, haveria de dizer. Também para iludir e fazer como poucos a jogada do duplo. “Ao dizer eu de um certo modo, de um modo ficcional, Roth tornou possível, através de Portnoy, um novo tipo de eu no mundo, uma dádiva de liberdade”, disse a escritora Zadie Smith em 2016, convidada por Philip Roth a fazer a leitura inaugural da Sala Philip Roth na Biblioteca de Newark.
“Em que outro lugar poderia estar a minha biblioteca pessoal?”, justificava o escritor numa carta que pediu para ser lida no momento em que anunciava a doação de quatro mil livros à biblioteca da cidade onde nasceu. 1969 era o ano Portnoy e o ano de uma viragem literária, o marco a partir do qual o jogo ganha asas. Quando escreve sobre sexo, sobre mulheres, sobre a identidade, sobre a América, os judeus, a política, a doença ou a morte, Philip Roth especula, escarnece, perfura de modo lancinante, é obsessivo, esgota, subverte e cria alter-egos, tudo isto, diz ele numa carta a Nathan Zuckerman — o maior de todos eles — para “estimular a imaginação”.
No livro Os Factos, escrito após um período de depressão, Roth afirma que irá contar factos da sua vida, mas convocando o ficcionista como auxiliador. Lá, ele fala dos pais, dos dois casamentos, do irmão, da vida no bairro, dos escândalos amorosos, mas escudando-se sempre. De tal forma que é a sua personagem, o Zuckerman a quem ele escreve a carta, a responder-lhe: “A tua vocação não é personalizar a tua experiência, mas sim personificá-la, dar-lhe corpo na representação de uma pessoa que não és tu. Não és um autobiógrafo, és um personificado.” E tudo isto ganha ainda mais graça quando é Roth a criar Zuckerman, ou seja, o seu contraditório.
O que se sabe de Philip Roth é aquilo que ele quer que se saiba mais uns pozinhos até que saia a biografia que ele se prontificou a ajudar a escrever. Até lá, leitores e potenciais biógrafos, limitam-se a ler nas entrelinhas da imaginação.
E é uma imaginação que, em Roth, parte de um território primordial e formador: Newark. O sítio onde construiu a sua identidade, habitado por gente, que como ele, andava também à procura de uma identidade. Era uma cidade de imigrantes. Irlandeses, polacos, italianos, alemães, russos, só mais tarde viriam os portugueses, primeiro poiso de quem chegava à América e queria vencer.
Philip Milton Roth nasceu ali em 1933 quando Newark ainda era um porto importante, centro industrial em expansão com uma burguesia poderosa. Ele era o segundo filho de um agente de seguros e de uma ex-secretária que deixou o emprego para se dedicar à casa e aos filhos. O jovem casal de judeus deixara a baixa da cidade onde vivera até então com a família para se instalar num bairro da classe média mais periférico, vivendas unifamiliares perfiladas em ruas arborizadas iguais a milhares de outras na América dos anos trinta. Chama-se Weequahic, nome herdado dos povos indígenas que ali viviam antes da colonização. Foi nesse ambiente que Roth aprendeu que mais do que ser judeu queria ser considerado americano, uma luta que Alexander Portnoy também havia de travar, rebelando-se contra o preconceito anti-semita e que Roth continuou para sempre.
Ele não era um escritor judeu americano. Era um escritor americano e foi a partir dessa condição que escreveu, também sobre ser judeu; ou seja, a experiência judaica era parte da experiência americana. Nisso, Roth tinha Saul Bellow como exemplo. Em Roth Unbound (2013), biografia literária de Philip Roth assinada por Claudia Roth Pierpont, lê-se que o escritor de Newark considerava o escritor de Chicago o “grande libertador do tradicional confinamento da literatura judaica”.
E Newark continha essa diversidade que ele via e lhe atraía na América e foi a partir dela que formou a sua visão do mundo. Anda-se pelas ruas daquela cidade e percebe-se mais uma vez como tudo ali é real e ficcional quando o passeio se faz com os livros de Roth.
Nas ruínas do centro, que ainda subsistem, quase se ouvem os gritos do Sueco Levov, protagonista de A Pastoral Americana (1997), a anunciar o fim dos tempos. Nos livros de Roth parece ser sempre assim, há um prenúncio de fim de era, de civilização, como se também a América se alimentasse disso, de uma radicalização que leva a outra coisa e...“Não escrevo sobre as minhas convicções. Escrevo sobre as consequências cómicas e trágicas de convicções questionáveis”, disse numa entrevista como que a afirmar que antes de tudo há um íntimo que não anda separado da política nem do tempo histórico, mas que lhes sobrevive. Ou seja, é por partir do que se diz ser o seu umbigo que chega ao mundo, como refere Francisco Agarez, tradutor de 11 dos livros de Philip Roth para português.
“Ele chega ao mundo a partir de si mesmo e de Newark”, refere. Talvez por isso se explique que a multiplicidade de leituras que pode ser feita das suas histórias e que, por exemplo um romance que ele diz ter escrito contra o anti-semitismo em 2004 – A Conspiração Contra a América — fosse recuperado em 2016 e lido como uma profecia que anunciara o presente da América de Trump.
A Newark do jovem Roth era então uma cidade relativamente segura, os rapazes cresciam na rua, jogavam basebol no grande parque junto ao lago, frequentavam a escola e iam às aulas de hebraico ao sábado. Os pais, pertencentes à segunda geração de imigrantes sonhavam-lhes um futuro de médicos ou advogados.
Com Philip não foi diferente. Inscreveu-se na universidade local, a Rutgers, em Direito, mas não passou do primeiro ano. Seguiria para outra, mais distante, mas desses tempos recorda as tardes na biblioteca local a ler. Foi o seu primeiro contacto com a literatura. A experiência valeu-lhe para criar uma das personagens de Goodbye, Columbus. O livro saiu em 1959, Roth tinha 26 anos. O seu eu literário já lá estava. Confirmava-se depois com Alexander Portnoy e seria trabalhado em todos os romances da série Zuckerman e Kempesh.
Só por uma vez Roth escreveu na terceira pessoa, e a protagonista era feminista. Foi no romance que antecedeu O Complexo de Portnoy, Quando Ela Era Boa, original de 1967 sobre uma mulher protestante do Midwest que procurava a perfeição. Tudo muito longe de todo o restante Roth e que parece contrariar uma das acusações que frequentemente lhe era feita e que sempre negou: a de que seria um misógino. Dizia ele que, se as suas personagens femininas levavam o leitor a acreditar nisso, era porque ele falhara como escritor ao concebê-las.
Só faltou o Nobel
Não voltou à terceira pessoa numa carreira que durou cinco décadas e na qual conquistou quase tudo com trinta romances e novelas a que se juntam quatro colecções de ensaios até anunciar que não tinha mais nada para dizer. Foi em 2012. O último livro saíra dois anos antes. Philip Roth tinha 77 anos, dois National Book Awards, dois National Book Critics Circle Awards, três PEN Faulkner, e um Pulitzer, só para mencionar os mais célebres. Deixara-se confundir com Nathan Zuckerman, o escritor natural de Newark, como ele, viciado em basebol, protagonista de nove romances; também se projectou em David Kepesh, o velho professor de literatura de outros três romances, entre os quais O Animal Moribundo (2001), além dos já referidos Alexander e Sabbath.
É uma vida que se mede sobretudo pela literatura porque foi para escrever que sempre viveu, solitário, fechado, obsessivo, focado em cada palavra. “Não gosto do tempo de espera entre um livro e outro. Escrevo porque é essa a minha vida”, disse numa entrevista ao Ípsilon em 2011. Francisco Agarez afirma, se dúvidas houvesse, que essa obsessão se nota no acto de traduzir. “Sentia-o sempre a vigiar-me sobre o ombro”, refere ao PÚBLICO numa altura em que se prepara para traduzir mais um livro de Roth, Operation Shykock: A Confession (1993), que a D. Quixote irá publicar ainda este ano.
“Traduzir Roth é um grande privilégio feito de muita dificuldade. Sinto que tenho ali sempre um guardião enquanto trabalho. Ele como que me vigia e eu tento ser o mais fiel possível. Não há espaço para floreados”, sublinha. E traça, então, uma linha imaginária. Num lado dessa linha está o escritor, na outra ponta o leitor. “O tradutor situa-se no meio, mas eu aqui vejo o rosto do escritor, vigilante, e por mais que me possa apetecer não posso fugir para o lado do leitor. Há ali uma intencionalidade que não deixa margem para o tradutor mostrar habilidades”, diz, a sorrir, e acrescenta: “Convivo com ele há 11 livros apesar de ele não me dar confiança; ele ensinou-me a ver-me ao espelho, aquele homem obriga-nos a ir ao fundo de nós e a escarafunchar e com isso dá-me a ilusão de estar mais perto dele, do autor. Talvez seja uma ilusão. Numa entrevista ele disse que a tradução é uma tragédia. Que fazer? O mais difícil é sentir que compreendemos o ambiente em que o autor põe as suas personagens a movimentarem-se.”
Mas o trabalho de editar Roth noutra língua não termina aí. Ele exigia que cada tradução fosse como que legitimada por uma pessoa da sua confiança. Em Portugal essa última revisão cabe a Helena Buescu. A catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa foi contactada pela agência Wiley, de Nova Iorque, que representa Philip Roth, para rever as traduções em português.
“Leio e envio à agência a minha apreciação”, conta ao PÚBLICO, confessando que nunca conheceu pessoalmente o escritor que considera “extraordinário”; que escreve sobre o que se pode dizer “a deterioração da modernidade”, “há uma esperança que se vai esboroando ao longo do século XX, vemo-la a desvanecer-se na política, nas relações humanas, amorosas; é uma escrita da angústia, muito crua”. Aponta o exemplo de A Pastoral Americana, o livro do fim de um tempo, do fim de uma cidade, a sua Newark que sucumbiu aos riots de 1967 e tarda em reerguer-se. E o de A Conspiração Contra a América (2004), com toda as leituras políticas que dela podem ser feitas.
Terão sido todos os livros de Philip Roth alegorias? Ou mais, alegorias pessoais? Uma resposta a isto seria o desvendar de um dos enigmas mais bem montados das letras contemporâneas. E um dos mais estimulantes porque o mistério permanece. Vai além da morte, permanece na tal memória que Roth acreditava que sobreviveria, ele que não era um homem religioso, mas totalmente literário. E na literatura, como ele também dizia, basta que haja imaginação. E um pé na realidade pode ajudar a sorrir.
Ora leia-se esta entrevista imaginada por ele, que é como quem diz, uma das suas personagens, em O Fantasma Sai de Cena (2007). A paródia são os jornalistas que entrevistam escritores: “ Fazia-me perguntas mortíferas e não desistia enquanto eu não lhe respondesse a seu contento. 'Aonde é que vai buscar as suas ideias?’ ‘ Como é que sabe se uma ideia é uma ideia boa ou uma ideia má?’ ‘Como é que sabe quando deve usar diálogo e quando deve usar narração simples sem diálogo?’ ‘Como é que sabe quando um livro está acabado?’ ‘Como é que escolhe uma primeira frase?’ Como é que escolhe um título?’ ‘Como é que escolhe uma última frase?’ ‘Qual é o seu melhor livro?’ ‘Qual é o seu pior livro?’ ‘Alguma vez matou uma personagem?’ ‘Ouvi um escritor dizer na televisão que as personagens tomam conta do livro e o escrevem elas próprias. É verdade?’.”