O transe nos pescoços e nas vozes de Bouchra Ouizguen

Abrindo o festival Alkantara, Corbeaux, da coreógrafa marroquina Bouchra Ouizguen, ocupará o Castelo de São Jorge, em Lisboa, de 23 a 25 de Maio. Um espectáculo para os corpos e as vozes de mulheres dos dez aos 68 anos.

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Hasnae El Ouarga/Compagnie O

Primeiro, vestidas de preto e com um lenço branco a esconder-lhes os cabelos, tomam vagarosamente posições. Depois, mais ou menos em uníssono, um uníssono propositadamente imperfeito, expelem aquilo que soa a um grito sufocado mas não tarda a transformar-se no som que segue o exemplo da voz mais dorida e aberta que se veste de líder. E a partir daí, durante meia hora, as vozes encontram-se e desencontram-se, sobrepõem-se, tornam-se mais viscerais e rítmicas, como o som de um exército feminino que se entrega a um luto ou a qualquer outro ritual concentrado na voz, na cabeça e no pescoço – “uma mise à nu do rosto e da voz”, chama-lhe a criadora. Porque à medida que estas mulheres, dos dez aos 68 anos, se entregam a um tal transe vocal, profundamente físico, tão identificável com vozes castigadoras como com outras a quem são aplicadas severas punições, os seus corpos mantêm-se quase estáticos, enquanto as cabeças se balançam para trás e para a frente, num repetido e sacudido movimento que parece levá-las para um qualquer estado de alteridade.

Bouchra Ouizguen, a coreógrafa marroquina que é autora de Corbeaux, o espectáculo que na próxima quarta-feira, dia 23, abre o festival Alkantara, confessa que foi tomada de assalto por esta imagem quando estava a trabalhar na sua criação anterior, Ha! (estreada em Portugal em 2014, no Festival Materiais Diversos). Este gesto concentrado no rosto, no pescoço e na voz chegou-lhe com uma tal intensidade que lhe foi mesmo complicado terminar Ha!, tentada que se sentiu a transpor a sua energia criativa para aquela ideia que não lhe dava descanso. Perante a súbita vontade de se dedicar a uma nova criação, aquela que estava em curso viu-se quase sob ameaça. Aquele novo gesto, que tanto podia ser de insubmissão e de frustração quanto de sofrimento e de desespero, de queixa ou denúncia colectiva quanto de ruína pessoal, ganhava, de repente, o lugar de algo a ser descoberto e explorado.

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Em Corbeaux, um exército feminino entrega-se a um ritual concentrado na voz, na cabeça e no pescoço — é “uma mise à nu do rosto e da voz”, chama-lhe a criadora Bouchra Ouizguen/Compagnie O

Se Ha! tivera por inspiração a poesia do autor persa Jalal ad-Din Rumi, Corbeaux nascia da atracção por um gesto simples que parecia eclipsar tudo à volta. Comparando-a a essa criação anterior, de que Corbeaux saiu sem pedir licença, Bouchra Ouizguen sinaliza tratar-se de “uma outra aventura”. Uma aventura que começou a esboçar-se quase de imediato. “Quando se termina uma peça”, diz a coreógrafa, “o sentimento habitual ao iniciar algo novo é um sentimento de abertura, de partida para um mundo extremamente excitante, porque não sabemos para onde vamos”. Mas, não sabendo para onde ia, sabia exactamente de onde queria partir: de um gesto magnético e da vontade de trabalhar com o máximo número possível de bailarinas, cantoras e actrizes, atravessando diferentes gerações. “Logo que fiz o casting em minha casa, todas elas se deixaram levar, porque aquela proposta falava a todas”, recorda. “Há qualquer coisa ali que é familiar a cada uma. Inspiro-me num gesto que não é da ordem da tradição popular, mas sim da ordem das vivências, daquilo que experimentamos no nosso dia-a-dia. É isso que me agrada nesse gesto.”

Desde esses primeiros instantes em sua casa, quando montou a peça, ali mesmo, em apenas 20 dias, Bouchra Ouizguen soube que a natureza de Corbeaux seria esmagada numa sala de teatro convencional. “O palco teatral era demasiado grande para acolher uma criação como esta, para permitir ver os milímetros da pele, a crispação dos rostos”, e tudo aquilo que só se consegue testemunhar numa situação de maior proximidade. Por isso, quando surgiu o convite para apresentar uma nova criação no programa da Bienal de Arte Contemporânea de Marraquexe, em que a sua Compagnie O era a única proposta, isolada, na área da dança, Ouizguen declinou a sugestão de se apresentar no Teatro Real da cidade marroquina.

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Até porque a coreógrafa não pensou Corbeaux como apenas mais uma das suas coreografias. No contexto da bienal, em que a cidade se viu habitada por uma série de centros de exposições efémeros, Bouchra quis partilhar essa mesma condição e responder com uma criação a que chama “uma escultura viva” assente num estado de urgência. “Somos uma companhia de dança, mas somos capazes de criar outras coisas”, respondeu aos programadores. “E, sobretudo, aceitamos estes convites para podermos criar outras coisas.” Foi, aliás, a partir do momento em que se decidiu a trocar as cadeiras confortáveis e a solenidade da sala de teatro pela turbulência, pela agitação e pelo ruído contínuo da Gare de Marraquexe que começou a pensar na peça como “uma escultura sonora que se pode escutar e olhar por um breve minuto”.

A gare permitia-lhe também ir à procura de um público que não é aquele que habitualmente transpõe as portas de um teatro ou de uma exposição de artes plásticas. Em vez de uma plateia em traje de gala, “passageiros, aqueles que vêm esperar alguém, que estão ali para um encontro amoroso ou apressados com a partida para algures, todas essas histórias que se cruzam num só sítio”. E para uma criação que buscava uma ressonância individual em cada uma das intérpretes, esse lastro do quotidiano encontrava um espelho maior – “são escolhas de intérpretes que se parecem um pouco com toda a gente fundida na multidão”. Esse gesto que Bouchra diz pertencer à vida, fácil de encontrar em qualquer instante dos nossos dias, e por ela elevado a material coreográfico, tem desde então sido sempre apresentado em espaços não convencionais. Em Lisboa, de 23 a 25 de Maio, assentará no Castelo de São Jorge.

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Hasnae El Ouarga/Compagnie O

Sonhos, desejos, questionamentos

Nascida em Ouarzazate em 1980, Bouchra Ouizguen começou a envolver-se no meio da dança de Marraquexe a partir de 1998 e, após ter ganhado considerável experiência e reconhecimento público ao trabalhar com Mathilde Monnier ou Boris Charmatz, fundou, em 2010, a Compagnie O. Esse impulso para a criação de uma nova estrutura acabou por afirmar-se como contraponto quase acidental em relação à esmagadora cena artística masculina marroquina. “Não foi por isso, no entanto, que criei um projecto com mulheres”, garante. “É verdade que encontro um prazer muito real em trabalhar com outras mulheres, mas o meu trabalho parte sempre de sonhos, desejos e questionamentos que não são masculinos nem femininos.” Corbeaux tem, na sua opinião, “uma ressonância animal, vegetal, masculina, feminina, infantil…”. Na verdade, procura alimentar-se das projecções que cada intérprete opera sobre aquele movimento. Daí que, nos ateliers desenvolvidos com as bailarinas locais que se juntarão à apresentação no Castelo de São Jorge, Bouchra nunca tenha procurado explicar-lhes de que maneira o contexto marroquino era importante para apreender aquele gesto; antes quis que cada uma delas encontrasse um eco dele na sua própria vida, e que trabalhasse a partir dele.

Muito mais importante do que qualquer questão de género acabaria por ser o background das suas bailarinas, subtraídas à tradição das aïtas (artistas de cabaret), cuja ligação à música e ao canto se tornou, desde a sua primeira criação para a companhia, Madame Plaza (2010), uma característica fundamental das obras de Bouchra Ouizguen. “Essa força da musicalidade e da capacidade de jogar com a voz está em todas as peças que fiz com elas”, reconhece a coreógrafa. “Não me interessava ter bailarinas mudas. Era muito importante, para mim, encontrar artistas que fossem extremamente livres em palco, que pudessem interpretar um texto, passar do corpo à voz e da voz ao corpo sem quaisquer problemas.” E a música, explorando a cada investida universos diferentes – da tradição árabe ou berbere – “emana sempre de uma forma muito forte aquilo que se passa em cena”.

Da cena acabou por emanar também a imagem que dá nome ao espectáculo. Já com a peça terminada, Bouchra Ouizguen deu por si a observar um dos últimos ensaios e a ser surpreendida por algo de muito animal que detectou no que as bailarinas construíam em conjunto. Ao olhar aqueles corpos trajados de preto, entregues a um transe em que vozes e cabeças se agitam, em vez de mulheres viu corvos.