O mundo é “muito pequeno” para Hernâni, o investigador que quer descodificar a saúde
Gosta de projectos megalómanos, mas acredita que o mundo, se estiver todo ligado, pode ser "muito pequeno". E torna tudo possível. Depois de ter vencido um prémio internacional de inovação em oncologia com o jogo Hope, Hernâni Zão Oliveira apresenta agora o I Fórum de Criação para a Literacia em Saúde, no Porto
Quando a comunicação se cruza com a oncologia, durante o seu percurso académico, Hernâni encontra um mundo com soluções e outro à procura delas. Se de um lado, nas aulas da licenciatura em Ciências da Comunicação, tem à frente tecnologias “fantásticas” para comunicar, chegam-lhe do outro, através do mestrado em Oncologia, “relatos de pessoas que não compreendem a doença que têm, ou porque a informação que lhes chega não é fidedigna ou é codificada pela gíria médica”. E isso punha em causa a sua recuperação.
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Quando a comunicação se cruza com a oncologia, durante o seu percurso académico, Hernâni encontra um mundo com soluções e outro à procura delas. Se de um lado, nas aulas da licenciatura em Ciências da Comunicação, tem à frente tecnologias “fantásticas” para comunicar, chegam-lhe do outro, através do mestrado em Oncologia, “relatos de pessoas que não compreendem a doença que têm, ou porque a informação que lhes chega não é fidedigna ou é codificada pela gíria médica”. E isso punha em causa a sua recuperação.
Literacia em saúde era ainda um conceito estranho para este jovem então com 22 anos — que já tinha no currículo uma licenciatura e ia a meio da segunda quando iniciou o mestrado que o levou aos corredores do Instituto Português de Oncologia (IPO). Hernâni Zão Oliveira, natural de Esposende, neste momento aluno de doutoramento na Universidade do Porto, onde fez todo o seu percurso, é mentor de um projecto que venceu um prémio internacional de inovação em oncologia. E co-criador de um laboratório de literacia em saúde, pioneiro em Portugal, que nesta terça-feira, 22 de Maio, no Porto, se estreia na organização do I Fórum de Criação para a Literacia em Saúde. É autor de uma série de outros pequenos projectos que tornam a saúde um tema mais fácil.
“Enquanto cientistas temos que sair das nossas torres e desempoeirar o conhecimento. Temos que falar para a sociedade de uma forma que nos percebam”, diz o investigador. Conversa com o P3 entre projectos, gargalhadas e uma ambição que próprio vê, “às vezes, desmedida”. O rapaz que gosta de projectos megalómanos há-de explicar-nos como é que o mundo, se estiver todo ligado, pode ser “muito pequeno”.
Três mundos
Ainda que “tente dar a tudo um jeito poético” — ou talvez por isso mesmo —, Hernâni deixa-se cair na subtileza de, aos 29 anos, conseguir dividir a sua vida em “três mundos”. A biologia como a via altruísta, que o permitiria “ajudar os outros” através da descoberta de respostas na genética; a música, algo reservado a si, “quase egoísta”, legado de uma família grande capaz de constituir o seu próprio coro; e a comunicação, como fórmula para “unir e resolver problemas”.
É opacamente ambicioso. Um contador de histórias. E um constante percursor de informação. Tudo o que faz é marcado pelos investigadores e professores que o apoiam. E por um frenético bater à porta de outros que o possam ou a quem possa ajudar.
No final do ensino secundário surgiram-lhe as dúvidas comuns de quem não consegue, aos 18 anos, saber para o que foi talhado. Escolheu o curso que lhe parecia o mais lato possível dentro das ciências naturais. Estamos em 2007 e a vontade de tirar boas notas — “o marrãozinho que tinha sido até ao 12.º ano” — dá lugar à curiosidade por encontrar respostas na biologia. Foi que o levou, no primeiro ano do curso, a fazer investigação a título voluntário em zoologia. No segundo, a entrar no Instituto de Biologia Molecular e Celular.
Ao mesmo tempo frequentava o curso de canto no Conservatório de Música do Porto. Dizia-se uma pessoa “não organizada, mas muito focada”, que “gostava de ir às aulinhas todas”. Mas, apanhado a meio do processo de Bolonha, sentia que a reestruturação do curso lhe estava a tirar proactividade. “Estava incompleto. Faltava-me uma paixão maior.”
Instado por um investigador, levou à letra a permissão do então ministro da Ciência e Tecnologia, Mariano Gago, de tirar dois cursos em simultâneo. Entra no primeiro ano de Ciências da Comunicação a tempo parcial, com o intuito de melhorar a escrita, e no terceiro de Biologia, porque queria estar no laboratório. “Nunca pensei, nem sabia que era possível, juntar as duas coisas”, confessa.
O percurso que queria fazer no campo da investigação científica leva-o naturalmente a fazer um mestrado em Oncologia. E uma história, contada por uma enfermeira do IPO, faz o clique: uma mulher submetida a uma reconstrução mamária não é informada que, ao fim da primeira operação, não terá mamilo. “As expectativas dela saem defraudadas. Ela entra num quadro depressivo e a recuperação atrasa.” E ouve repetições desta história: pessoas que saem do hospital e, em casa, ficam dependentes de fontes de informação que não são fidedignas; doentes que procuram ter autonomia, mas não sabem como por não terem literacia suficiente para tal.
Hernâni percebe então que o seu futuro não passará pelo laboratório. “Eu quero é resolver este tipo de problemas”, conclui. Novamente com a alavanca de um professor, concretiza a ideia de uma infografia sobre cancro da mama, que explique o processo desde o diagnóstico à recuperação. Vai bater à porta da Faculdade de Belas Artes e cruza-se com duas designers que viriam a fazer parte do White Studio, do designer Eduardo Aires, com quem “viria a trabalhar durante quase todo o percurso”.
Herói de pijama
A ponte entre a comunicação e a oncologia está feita. E Hernâni é confrontado com um novo problema, desta vez na ala pediátrica, colocado pelo IPO: o internamento obriga as crianças a um estilo de vida quase sedentário, num ambiente que gera ansiedade e medo, de onde têm poucos escapes.
A procura de soluções leva a recém-formada equipa — a quem se junta para esse propósito um aluno de mestrado da Faculdade de Engenharia, médicos e uma pessoa da área do cinema — a criar um videojogo que tem o intuito de promover o exercício físico e facilitar a adaptação das crianças (entre os seis e os dez anos) aos novos hábitos que a doença lhes exige, no hospital, em casa e na escola. Estamos em 2014 e nasce o Hope. O projecto que havia de sair da gaveta três anos mais tarde para ganhar o concurso internacional de inovação não-terapêutica em oncologia, Oncology C3 Prize, promovido pela farmacêutica Astellas Pharma, em parceria com Robert Herjavec, investidor do Shark Tank americano.
“É a história de uma criança que luta contra o cancro como os super-heróis lutam contra os maus da fita”, apresenta Hernâni. Num jogo que segue uma narrativa, cada nível implica a superação de um problema real na vida destas crianças. Alguns exemplos: “Transformamos o facto de a criança ter medo de tirar sangue num jogo de tiro ao alvo, em que ela percebe que se estiver mais quieta e calma o procedimento é mais fácil. Entramos dentro do corpo e é a criança que, saltando, mata as células cancerígenas. Assim, percebe o que é a quimioterapia e está a fazer exercícios físicos que necessita.” No final deste nível, a própria criança rapa o cabelo ao seu boneco virtual e este ganha uma nova forma de super-herói: agora tem pijama e é careca.
“Esta é a primeira vez que a criança olha para si e percebe que a imagem que tem não é de fraqueza, mas de força.” Importa mudar a sua percepção quanto à doença, conta o investigador. Terá sido isso, acredita, a convencer o júri do concurso que atribuiria ao projecto o prémio máximo de 50 mil dólares.
“Papa concursos”
A concretização deste e outros projectos foi alavancada por financiamento externo — no caso do Hope, uma candidatura à bolsa de empreendedorismo do IAPMEI permitiu a Hernâni dedicar-se durante um ano ao projecto. “Sou muito papa concursos, ando sempre atrás de bolsas que me permitam concretizar os meus projectos. De que outra forma um projecto megalómano como este se concretizava, com uma equipa que estava quase toda pro bono?”
Estamos em 2014, Hernâni terminara o mestrado e a licenciatura, já voltara de Coimbra onde trabalhou seis meses a comunicar ciência, quando decide criar uma startup de comunicação em saúde, a Bright. Mas o caminho profissional de cada um dos membros da equipa há-de dispersar o projecto. Hernâni passa três meses em Madrid com uma bolsa. Mais um ano na Madeira a trabalhar. Volta em Maio de 2015, candidata-se a uma bolsa de doutoramento da Fundação de Ciência e Tecnologia e o comboio volta aos carris. Mas o destino é diferente, há um novo projecto em mente: a criação de um laboratório de literacia em saúde, que incentive a investigação na área e faça a ponte a academia e a sociedade.
Então, em 2016, enquanto aluno do programa doutoral em Media Digitais — parceria entre a Faculdade de Engenharia do Porto e a Universidade de Austin — candidata, com sucesso, a ideia de criar o Laclis – Laboratório de Criação para a Literacia em Saúde a um concurso dos Media Innovation Labs da Universidade do Porto. Hoje o laboratório junta 25 investigadores de nove centros de investigação. Objectivo? Promover a investigação, formar jornalistas em saúde e profissionais de saúde em comunicação, e passar a informação descodificada à sociedade.
Claro que, pelo meio, Hernâni já estava a frequentar outro mestrado, em Educação para a Saúde, no Instituto de Saúde Pública. “Gosto muito de aprender e não tenho nenhum receio em dizer que não percebo das coisas.” Tem uma constante vontade de aprender e solucionar. Será graças a isso que o Laclis há-de continuar. A Bright, que hoje conta com cinco pessoas, também. Tal como o Hope, que terá uma aplicação para os pais e, correndo como previsto, será um dia disponibilizado gratuitamente.
Mas, se há que colocar pontos e vírgulas neste percurso, o final do ano passado é um desses momentos. Em Novembro de 2017, quando sobe ao palco, no México, para receber o prémio da Astellas, Hernâni lembra como um ano também ele recebera um diagnóstico. Tinha um linfoma. “Eu tive cancro também. Foi difícil, mas a forma que tive de superar a doença foi dedicar-me àquilo que eu queria. E foi incrível essa superação.” E agora? “Agora estou mesmo assoberbado em trabalho e estou feliz. O mundo é muito pequeno e eu tenho conseguido focar-me em várias coisas, com mais ou menos ajuda. Normalmente é sempre com mais ajuda. Porque, sem ela, não consigo fazer nada.”