O (neo)liberalismo e a ascensão da China a potência global
Como o caso da EDP mostra, o fosso entre o capitalismo (global) e a democracia liberal (nacional) é algo cada vez profundo.
1. Vivemos tempos extraordinários. Caminhamos para um modelo de serviço público e de segurança energética original, iniciado com as "privatizações" da EDP e REN, entre 2011-2013. Ainda que indirectamente, o Estado chinês tende a ser o principal fornecedor de ambas as coisas... em Portugal. Quanto ao Estado português, parece acreditar que um Estado estrangeiro — o qual detém na totalidade a China Three Gorges, o accionista maioritário da EDP, e não é membro da União Europeia, nem faz parte das alianças político-militares do país —, é uma entidade adequada para deter activos estratégicos. Trata-se, apenas, do mercado a funcionar e isso é intocável. Por isso, nem vale a pena olhar para o decreto-lei nº 138/2014. Essa legislação estabeleceu um regime de salvaguarda de activos estratégicos essenciais e da segurança do aprovisionamento em serviços fundamentais para o interesse nacional como a energia. Mas seria uma intervenção intolerável dos poderes públicos no mercado invocar o artigo 3º, nº1. Este permite ao governo opor-se “à realização de operações das quais resulte, directa ou indirectamente, a aquisição de controlo, directo ou indirecto, por uma pessoa ou pessoas de países terceiros à União Europeia [...] sobre activos estratégicos, independentemente da respetiva forma jurídica”. Também não tem razão de ser pensar em usar o nº 3, alínea a) do mesmo artigo pois não existem indícios “de ligações entre a pessoa adquirente e países terceiros que não reconhecem ou respeitam os princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Não, esse problema não se levanta com a China. São apenas críticas dos seus detractores. (Ver Human Rights Watch, “EU: Suspend China Human Rights Dialogue". Também não é relevante que a União Europeia negue o estatuto de economia de mercado à China na Organização Mundial de Comércio (OMC) e a acuse de sérias distorções económicas. (Ver Comissão Europeia, “On Significant Distortions in the Economy of The People's Republic of China for the Purposes of Trade Defence Investigations”. Tudo meros fait-divers.
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1. Vivemos tempos extraordinários. Caminhamos para um modelo de serviço público e de segurança energética original, iniciado com as "privatizações" da EDP e REN, entre 2011-2013. Ainda que indirectamente, o Estado chinês tende a ser o principal fornecedor de ambas as coisas... em Portugal. Quanto ao Estado português, parece acreditar que um Estado estrangeiro — o qual detém na totalidade a China Three Gorges, o accionista maioritário da EDP, e não é membro da União Europeia, nem faz parte das alianças político-militares do país —, é uma entidade adequada para deter activos estratégicos. Trata-se, apenas, do mercado a funcionar e isso é intocável. Por isso, nem vale a pena olhar para o decreto-lei nº 138/2014. Essa legislação estabeleceu um regime de salvaguarda de activos estratégicos essenciais e da segurança do aprovisionamento em serviços fundamentais para o interesse nacional como a energia. Mas seria uma intervenção intolerável dos poderes públicos no mercado invocar o artigo 3º, nº1. Este permite ao governo opor-se “à realização de operações das quais resulte, directa ou indirectamente, a aquisição de controlo, directo ou indirecto, por uma pessoa ou pessoas de países terceiros à União Europeia [...] sobre activos estratégicos, independentemente da respetiva forma jurídica”. Também não tem razão de ser pensar em usar o nº 3, alínea a) do mesmo artigo pois não existem indícios “de ligações entre a pessoa adquirente e países terceiros que não reconhecem ou respeitam os princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Não, esse problema não se levanta com a China. São apenas críticas dos seus detractores. (Ver Human Rights Watch, “EU: Suspend China Human Rights Dialogue". Também não é relevante que a União Europeia negue o estatuto de economia de mercado à China na Organização Mundial de Comércio (OMC) e a acuse de sérias distorções económicas. (Ver Comissão Europeia, “On Significant Distortions in the Economy of The People's Republic of China for the Purposes of Trade Defence Investigations”. Tudo meros fait-divers.
2. Como o caso da EDP mostra, o fosso entre o capitalismo (global) e a democracia liberal (nacional) é algo cada vez profundo. No passado, a ideia da democracia liberal e do capitalismo estarem estreitamente ligados parecia sólida. A hostilidade do pensamento socialista-comunista a ambos, durante a Guerra-Fria, dava-lhe uma consistência aparentemente inquestionável. Como essa ideia enraizada ao longo de décadas nas sociedades ocidentais, muitos não compreendem o mundo em que hoje vivem, interpretando mal as suas tendências e as novas realidades em formação. Mas a junção, aparentemente indissolúvel, da democracia liberal e do capitalismo foi mais um acaso histórico da Guerra-Fria. (Ver Azar Gat, “The Return of Authoritarian Great Powers” in Foreign Affairs). Ideologicamente, o (neo)liberalismo emergiu como barreira ao marxismo e ao comunismo soviético. Isso é bem visível em obras fundamentais como “O Caminho para a Servidão” de Friedrich Hayek (trad. port., Edições 70, 2008), escrito originalmente em 1944. Mais visível é ainda no pensamento de Milton Friedman, o economista da Universidade de Chicago incontornável no ideário (neo)liberal. Num dos seus mais influentes livros, “Capitalismo e Liberdade” (1962), sustentou que a liberdade económica é condição essencial para a liberdade individual e social. O tema foi retomado no início dos anos 1980 em “Liberdade para Escolher” (trad. port., Lua de Papel, 2012), o qual reflecte as ideias expostas previamente numa série de televisão norte-americana apresentada conjuntamente com Rose Friedman. (Ver “Free To Choose: The Original 1980 TV Series”. Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos EUA, protagonizaram sua aplicação à economia e sociedade nos anos 1980. As políticas (neo)liberais de ambos são apontadas como estando na origem do colapso económico e político da antiga União Soviética e da vitória do Ocidente na Guerra-Fria. A euforia (neo)liberal instalou-se a partir daí. Assistiu-se a uma onda de revivalismo das ideias de Adam Smith e David Ricardo, proponentes do laissez-faire capitalista liberal clássico, via os já referidos Friedrich Hayek, Milton Friedman e outros, que se converteram na forma dominante de ver o mundo pelo Ocidente.
3. A privatização de empresas públicas, a liberalização dos mercados, a redução da despesa social, um Estado mínimo na economia, etc. tornaram-se ideias-chave a nível nacional e nas políticas do mercado único da União Europeia. Emergiu uma crescente hostilidade à presença do sector público na economia, como fornecedor de serviços e/ou bens públicos e detentor de empresas estratégicas nacionais. Para além do Ocidente, a China, uma vez integrada na OMC, iria converter-se aos valores do (neo)liberalismo. Por conveniência de lucro imediato — aproveitamento de custos salariais baixos e da enorme população da China —, foi menosprezada a possibilidade de combinação, com sucesso, de um capitalismo dirigido pelo Estado chinês com um autoritarismo político. A Rússia, com Vladimir Putin, era intratável, mas a China seria um "bom aluno" e domesticável pelo comércio. A revista The Economist e o jornal Financial Times — duas das mais influentes publicações ocidentais —, durante longos anos difundiram tais ideias: os eficientes mercados contra os ineficientes Estados. Incutiam nos seus leitores a ideia de uma gradual conversão da China ao (neo)liberalismo ocidental. Mas o tom mudou abruptamente nos últimos tempos. Houve um choque de realidade. Há cada vez sinais mais claros de uma ostensiva e bem-sucedida não conversão da China ao modelo de democracia liberal e de economia de mercado. (Ver “How the West got China wrong” in The Economist. No caso do Financial Times podemos notar similares preocupações e mudança de tom. (Ver Martin Wolf, “U.S.-China Rivalry Will Shape the 21st Century”. A questão é que os (neo)liberais não perceberam, ou não quiseram perceber, o mundo que estavam a criar. Nas sociedades europeias e ocidentais, ignoraram, ou substimaram, as fracturas sociais internas e as desigualdades sociais, criando muito do terreno que alimenta hoje o populismo e os partidos anti-sistema. Ao mesmo tempo, enfraqueceram o Estado como garante último da soberania democrática. Com a sua obsessão pelos mercados e privatizações, associada à ganância lucrativa, o ideário (neo)liberal, ferozmente hostil ao marxismo e comunismo soviético, abriu, paradoxalmente, caminho à ascensão da China (que se mantém oficialmente comunista...). Permitiu, nos meios de negócios e políticos ocidentais, instalar a falsa ideia de que a China é apenas um mercado gigante e apolítico. E que as empresas chinesas — tal como as desnacionalizadas multinacionais idolatradas pelos (neo)liberais —, competem no mercado sem estarem serviço dos interesses políticos e estratégicos do seu Estado de origem.
4. “Se um regime autoritário como a China se pode posicionar como defensor do (neo)liberalismo […] — será que este é realmente um sistema que vale a pena salvar?” (Ver “China — Neoliberalism’s Last Hope?” in Thom Hartmann Program. Esta foi a pergunta provocatória lançada por Thom Hartmann nos EUA, após a intervenção em defesa da globalização e do livre-comércio feita Presidente chinês, Xi Jinping, no Fórum Económico Mundial de Davos de 2017. Mas é uma questão que todos os europeus deveriam colocar a si próprios. No caso da EDP, é confrangedor ver como as ideias (neo)liberais, que impregnam o centro-direita político, e, ainda que de forma mais matizada, também o centro-esquerda, bloquearam o que deveria ser uma visão clara e consequente do interesse estratégico nacional. (Ver “O erro estratégico da venda da EDP ao Estado chinês”). Colocar no mesmo plano empresas de Estado (como é o caso da China Three Gorges) e actores económicos privados; ficar indiferente a que uma grande empresa, relevante em termos de serviço público e de segurança energética, possa ser detida, ainda que indirectamente, por um Estado não membro da União Europeia e não aliado; e acreditar que o governo nacional nada tem a ver com isso por já não ter acções da empresa, mostra o grau de distorção que se instalou. Em 1970 Milton Friedman defendeu que “a responsabilidade social da empresa é aumentar os seus lucros”. (Ver “The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits”, artigo originalmente publicado no NYT, 13/09/1970). O governo chinês provavelmente concorda com Milton Friedman acrescentando-lhe a finalidade de prosseguir o seu interesse nacional na EDP. Ironias à parte, imaginar que o mundo funciona todo por cânones (neo)liberais e que a China é um actor convertido a essas regras, é uma fantasia perigosa. Mais tarde ou mais cedo pode acabar num pesadelo.