Morreu Júlio Pomar, “uma figura mítica da arte portuguesa”
Desde muito cedo, com um grande empenho social e político, Júlio Pomar tornou-se uma figura fundamental da arte portuguesa. Morreu aos 92 anos.
Contava 92 anos e até há bem pouco tempo era possível vê-lo de visita ao Atelier-Museu Júlio Pomar, perto da Calçada do Combro, que fica mesmo em frente da casa onde vivia. Aqui, desde 2013, abriu as portas a inúmeros diálogos entre a sua obra e artistas e curadores de diferentes gerações, em programações de grande qualidade que contribuíram para a divulgação do seu trabalho junto de autores mais jovens. Júlio Pomar morreu esta terça-feira no Hospital da Luz, em Lisboa, confirmou ao PÚBLICO Sara Antónia Matos, directora do atelier-museu. O velório realiza-se esta quarta-feira, a partir das 18h e até às 23h, no Teatro Thalia (Estrada das Laranjeiras em Lisboa). Quinta-feira, 24 de Maio, pelas 16h terão início as exéquias fúnebres, reservadas à família.
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Contava 92 anos e até há bem pouco tempo era possível vê-lo de visita ao Atelier-Museu Júlio Pomar, perto da Calçada do Combro, que fica mesmo em frente da casa onde vivia. Aqui, desde 2013, abriu as portas a inúmeros diálogos entre a sua obra e artistas e curadores de diferentes gerações, em programações de grande qualidade que contribuíram para a divulgação do seu trabalho junto de autores mais jovens. Júlio Pomar morreu esta terça-feira no Hospital da Luz, em Lisboa, confirmou ao PÚBLICO Sara Antónia Matos, directora do atelier-museu. O velório realiza-se esta quarta-feira, a partir das 18h e até às 23h, no Teatro Thalia (Estrada das Laranjeiras em Lisboa). Quinta-feira, 24 de Maio, pelas 16h terão início as exéquias fúnebres, reservadas à família.
“O Júlio Pomar foi um artista com uma enorme importância nas artes portuguesas do século XX, desde o início do seu percurso. Foi de uma enorme precocidade, pois o primeiro texto que escreveu, sobre a modernidade em Portugal, fê-lo quando tinha 16 anos. Foi o início de um percurso como pintor de um realismo empenhado socialmente, que foi o neo-realismo português”, disse ao PÚBLICO Delfim Sardo, responsável pela programação de artes plásticas da Culturgest. “Foi um pintor de enorme recursos técnicos e plásticos, sobretudo depois de se interessar por Velázquez e Francis Bacon, no início da década de 50.”
Além de destacar “o seu virtuosismo”, Delfim Sardo, que sublinha o privilégio de o ter conhecido, recorda “uma pessoa apaixonante, muito inteligente, culta e um sedutor”.
“Uma figura mítica da arte portuguesa da segunda metade do século XX”, foi assim que João Ribas, director do Museu de Serralves, descreveu o artista. “Durante sete décadas teve um contributo fundamental no panorama artístico português, com a sua reinvenção não só técnica mas de estilo. Sempre fundamentado numa postura que reafirma a arte como uma forma de pensamento, de reflexão sobre a sociedade, e até como forma de protesto social e resistência.” Com um domínio de vários géneros, entre os quais o retrato — Pomar pintou Mário Soares enquanto Presidente da República —, o artista trabalhou os grandes ícones da cultura portuguesa, como Fernando Pessoa.
“É um dos mais importantes artistas do século XX português”, garante Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte e directora do Museu do Neo-Realismo. “Ficava sempre zangado quando lhe punham a etiqueta de pintor neo-realista, porque não gostava que o fechassem numa gaveta e porque a sua pintura, na realidade, foi para muitas outras direcções.”
Se é verdade que chamou a si a tarefa de criar o neo-realismo na pintura, transpondo para as artes visuais um movimento que era essencialmente literário, também é verdade que essa ligação, que também não pode dissociar-se da sua escrita nem da sua “militância política empenhadíssima”, durou menos de dez anos, explica esta professora universitária.
“Essa etiqueta corresponde ao Júlio Pomar dos 20 anos, ao Júlio que se transforma num teorizador do neo-realismo na pintura, ao Júlio que é preso como outros militantes do MUD Juvenil [Movimento de Unidade Democrática, de oposição à ditadura], perdida a esperança de que o regime acabasse. O Júlio que vai para Paris corta com o neo-realismo, embora continuasse a acreditar numa arte envolvida e partilhada.”
Para a historiadora de arte, há que salientar na obra de Pomar “o trabalho de desenho absolutamente extraordinário”, a série que faz nos anos 1960 e inícios dos 70 a partir de O Banho Turco, de Ingres, os objectos “muito criativos” da década de 70, e o ciclo dos 1980/90, em que recupera “uma certa retratística dos heróis” com Pessoa ou Camões, ciclo já referido pelo director do Museu de Serralves.
Combater o regime
A sua ligação aos jovens artistas não será alheia, sem dúvida, ao comprometimento político que marcou os primeiros anos da sua carreira e que é hoje também uma norma para boa parte dos criadores mais novos. Júlio Pomar entrou muito cedo, em 1934, para a António Arroio, onde foi colega de artistas como Marcelino Vespeira, Cesariny e Cruzeiro Seixas. Aqui preparou a sua admissão às Belas-Artes de Lisboa, em 1942, que viria a frequentar apenas durante dois anos. Alvo de discriminação, como todos os alunos oriundos da António Arroio, mudou-se para as Belas-Artes do Porto em 1944, onde conhece Fernando Lanhas, de quem foi amigo, e com quem participa nas Exposições Independentes que se realizavam naquela cidade nortenha.
Um ano mais tarde realiza a primeira obra neo-realista, O Gadanheiro, que, com o Almoço do Trolha, é uma das mais conhecidas deste movimento em Portugal, que reuniu também os pintores Vespeira, Querubim Lapa, Alice Jorge e outros, numa procura da forma herdada do realismo oitocentista que exprimisse o viver e o quotidiano das classes mais desfavorecidas, teorizada em Portugal por pensadores como Mário Dionísio ou Ernesto de Sousa. Ao mesmo tempo, Pomar integrava o Partido Comunista e o MUD Juvenil (que lhe valeria uns meses na prisão), e a partir de 1956 foi um dos organizadores e um dos participantes nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, que se opunham às mostras oficiais organizadas pelo regime de Salazar.
Estes tempos são de intensa actividade – é também por esta altura que Júlio Pomar começa a escrever textos teóricos e de reflexão pessoal sobre a arte, reunidos e publicados nos anos mais recentes. Com frequência, é esta a época que se associa imediatamente ao nome do pintor. Mas a sua obra, que tocou inúmeras áreas, da pintura ao desenho, da gravura à cerâmica, da assemblage ao azulejo (são dele as decorações da estação do Alto dos Moinhos do Metropolitano de Lisboa) vai muito além desta primeira fase neo-realista. Sobrevive nestes tempos de juventude graças a trabalhos vários de decoração e ilustração, vendendo raramente alguma pintura.
Ao mesmo tempo, viaja regularmente, uma actividade que só abrandou nos últimos anos de vida. Madrid e Paris são as primeiras cidades visitadas, seguindo-se a Itália e Marrocos. Da primeira traz a recordação dos negros goyescos que encontraremos na sua pintura na década de 60. Em Paris, para onde se muda em 1963, estuda plasticamente a obra de Ingres e Matisse, por exemplo, e encontraremos uma revisitação dos papéis colados deste último nas colagens eróticas da década de 60/70. Pomar pinta muito, obsessivamente quase, tendo já substituído nesta época o rígido contorno neo-realista (e abandonado a sua ligação ao Partido Comunista), de inspiração sul-americana, por um traço livre e expressivo que se alia à exploração da riqueza cromática do mundo.
Como Picasso, podemos dizer de Pomar que toda a arte do passado que o interessasse passava pelo seu pincel – ou pela ponta seca da gravura, ou pelo lápis de desenhar – num vaivém constante entre a obra que se fazia e os mestres de outros tempos. Tudo lhe servia para criar, quer fossem os temas populares – e recordamos há bem pouco tempo uma exposição sobre a sua cerâmica que teve lugar em Lisboa, no Atelier-Museu Júlio Pomar, comissariada por Catarina Rosendo, onde se viam reinterpretações surpreendentes dos motivos etnográficos portugueses –, quer os índios xingu (de uma série de 1988), a figura de Frida Khalo (outra série de 1999), ou mesmo o retrato oficial do Presidente da República Mário Soares, passando por retratos de pintores e escritores, ou tigres, macacos, touros, tartarugas e outros, não raro adoptando feições e traços humanos, talvez em homenagem às ilustrações que realizava quando novo.
Fez inúmeras exposições individuais e colectivas, em Portugal e no estrangeiro, entre as quais se destaca uma antológica de objectos no Museu de Serralves – A Minha Cadeia da Relação, 2008 – e uma Autobiografia em 2004, no Museu Berardo, em Sintra. Recebeu diversos prémios, entre os quais o Prémio de Gravura da I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957), o Grande Prémio de Pintura da II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1961), o Prémio AICA-SEC (1995) e o Grande Prémio Amadeo de Souza Cardoso (2003). É doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa (2013).
A melhor homenagem que se pode fazer a Júlio Pomar agora, defende a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, é tê-lo exposto nos museus portugueses, começando pelo do Chiado, que devia dedicar-lhe uma retrospectiva “imediatamente”. “Temos de nos perguntar: onde é que amanhã podemos ver a obra de Pomar para além do Atelier-Museu? A Gulbenkian tem boas obras, mas não as expõe. E não é a única.”
Júlio Pomar era pai do pintor Vítor Pomar e do crítico de arte Alexandre Pomar, que, em 2004, publicou o catalogue raisonné da sua obra.