Câmara adjudicou mais de uma dúzia de contratos a empresas da família do seu presidente

“Não me apercebi”, foi um “lapso evidente e ostensivo”, diz o autarca para explicar o facto de assinar um contrato com o próprio pai. Ilegalidades podem originar perda de mandato.

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CARLA CARVALHO TOMAS / PUBLICO

O presidente da Câmara de Castelo Branco, Luís Correia, assinou, em nome da autarquia, pelo menos dois contratos com o próprio pai, sócio de uma empresa de estruturas de alumínio. A firma, de que são igualmente sócios o pai e um tio da mulher do autarca, a deputada socialista Hortense Martins, foi contratada por aquele município pelo menos sete vezes, sempre por ajuste directo.

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O presidente da Câmara de Castelo Branco, Luís Correia, assinou, em nome da autarquia, pelo menos dois contratos com o próprio pai, sócio de uma empresa de estruturas de alumínio. A firma, de que são igualmente sócios o pai e um tio da mulher do autarca, a deputada socialista Hortense Martins, foi contratada por aquele município pelo menos sete vezes, sempre por ajuste directo.

Para lá destas adjudicações, o município - de que Luís Correia foi vereador a tempo inteiro entre 1997 e 2013, ano em que sucedeu na presidência ao também socialista Joaquim Morão - celebrou numerosos contratos com outras empresas às quais o autarca, o pai e as irmãs se encontram directa ou indirectamente ligados.

Acontece que a lei impede os titulares de cargos políticos de intervir, seja de que forma for, em contratos em que os próprios, ou os familiares mais chegados, tenham interesse.  A violação desta norma obriga até o Ministério Público a propor aos tribunais administrativos a perda de mandato dos infractores.

Por outro lado, todas as entidades públicas estão impedidas de contratar empresas cujo capital seja detido em mais de 10% por titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos, ou pelos seus cônjuges, ascendentes e descendentes. O incumprimento deste preceito determina a nulidade dos contratos celebrados, conforme o Tribunal de Contas confirmou recentemente (ver notícia à parte).

Pai, sogro e tio da mulher

Criada em 1982, a sociedade Strualbi – Estruturas de Alumínio Ldª, é detida em cerca de 20% por Alfredo Correia, pai do autarca de Castelo Branco, cabendo mais 20% a Joaquim Martins, pai da sua mulher, outro tanto a Adriano Martins, tio da mesma, e o restante a dois outros sócios. Apesar disso, em Outubro de 2015, Luís Correia assinou o despacho de adjudicação à Strualbi, por ajuste directo e sem consulta a outros eventuais interessados, da “implementação e reforço do sistema de segurança” de um pavilhão municipal.

O contrato, no valor de 39.947 euros, foi dias depois assinado pelo próprio autarca, por parte do município, pelo seu pai e por um sócio, ambos em representação da empresa.

No ano anterior já Luís Correia subscrevera um outro ajuste directo com a mesma firma, igualmente representada no acto pelo seu pai, adjudicando-lhe a construção da “cobertura exterior” de uma escola. Para a execução da obra, no valor de cerca de 54 mil euros, foram também consultadas duas das principais construtoras da região. A única que respondeu, além da Strualbi, é uma das principais fornecedoras do município e aposta sobretudo em empreitadas de grande dimensão.

Confrontado pelo PÚBLICO com a dupla ilegalidade dos dois contratos - não só devido à sua intervenção nas respectivas assinaturas, em nome do município, mas também pelo facto de a sociedade estar proibida de participar em contratos públicos por ele ser titular de um cargo político – Luís Correia respondeu por email, afirmando que se tratou de um “lapso evidente e ostensivo”. O autarca socialista acrescentou que o último daqueles dois contratos, o de 2015, “apesar de ter sido mantido na plataforma electrónica” dos contratos públicos (base.gov.pt), foi por si anulado depois de constatar “o lapso cometido”.

Numa reunião do executivo municipal de Castelo Branco realizada em Novembro passado, o presidente da Câmara já respondera a um vereador da oposição que se referira vagamente a estes dois casos. “Efectivamente assinei um contrato sem me aperceber que familiares meus estavam envolvidos (…) apercebi-me num segundo contrato e anulei-o imediatamente”, afirmou, tal com se lê na acta da sessão, dando a entender que não reparou na presença do pai na assinatura do contrato – uma formalidade em que, além deles dois, participaram apenas duas pessoas, assinando todos o documento.

Nas explicações dadas, quer na reunião de Câmara, quer nas respostas que enviou ao PÚBLICO, Luís Correia não fez, porém, qualquer referência às outras cinco adjudicações feitas pelo município de Castelo Branco à Strualbi desde 2009 - ano em que a publicação dos contratos no portal base.gov.pt passou a ser obrigatória para as entidades sujeitas ao Código dos Contratos Públicos.

Um desses contratos, datado de Abril de 2016, foi assinado pelo então vice-presidente da Câmara e por dois dos sócios do pai de Luís Correia. O negócio, no valor de 87 205 euros, visava a construção de um telheiro numa outra escola. Os restantes quatro, no valor global de 167.731 euros, foram celebrados entre 2009 e 2013, no último mandato de Joaquim Morão, quando Luís Correia era vice-presidente da autarquia.

Todos eles são ilegais, mesmo que Luís Correia não tenha tido intervenção pessoal nos processos, uma vez que a Strualbi estava impedida pelo regime de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (artº 8º da Lei 64/93) de contratar com entidades públicas.

Ainda que os 22 contratos outorgados pela Strualbi com entidades públicas entre 2009 e 2016, no montante de cerca de 480 mil euros, representem uma pequena parcela do seu volume de negócio (que ronda 1,5 milhões de euros por ano), o município de Castelo Branco foi o seu principal cliente nesse sector. Ao todo, nas sete adjudicações que lhe fez, a autarquia pagou-lhe cerca de 349 mil euros, o que corresponde a 73% do total facturado a entidades públicas.

Sócios e sociedades cruzadas

Situações semelhantes às verificadas com a contratação da Strualbi ocorreram com a Grincop, uma empresa que se dedica à comercialização e manutenção de equipamentos informáticos e que teve Luís Correia como sócio até 2003. A sua mulher – a deputada Hortense Martins, actual líder do PS no distrito de Castelo Branco, cargo em que sucedeu a Joaquim Morão – foi também gerente dessa empresa.

De acordo com os dados do registo comercial, o então vereador, economista de profissão, detinha 50% do capital dessa sociedade, pertencendo o restante ao empresário José Manuel Capinha. Os registos públicos não dão conta da cedência da quota de Luís Correia, mas o autarca facultou ao PÚBLICO a escritura através da qual, em Junho de 2003, a sua participação na Grincop foi vendida ao outro sócio e respectiva mulher.

Na mesma escritura ficou também consignado que Hortense Martins renunciaria ao lugar de gerente da firma. Tal renúncia, porém, só ocorreu em Janeiro de 2005, conforme consta do registo publicado na III Série do Diário da República de 14 de Junho de 2005. Nessa altura, a actual deputada, que garantiu ao PÚBLICO, por escrito, ter renunciado à gerência da Grincop dois anos antes, em 9 de Junho de 2003, era também sócia de José Capinha numa empresa de telecomunicações, a Cbtel, entretanto dissolvida.

O histórico da Grincop mostra entretanto que a família Correia regressou à empresa em 19 de Dezembro de 2016, altura em que o pai do presidente da Câmara adquiriu 9,25% do seu capital a José Capinha. A compra foi efectuada através de uma outra sociedade, a Burgo de Sonho, onde Alfredo Correia é sócio do mesmo José Capinha.

Quatro dias depois, a Burgo de Sonho comprou também a quota que a Grincop detinha na Rodoenergia, uma sociedade de distribuição de combustíveis na qual Luís Correia detém actualmente 10% de forma directa. Por intermédio da imobiliária Casabrigada, cujo capital partilha com o pai e as irmãs, o autarca possui mais 7,5% daquela empresa. Uma das suas irmãs assegura a gerência da mesma.

O quarto sócio desta revendedora de combustíveis é a Auto Transportes do Fundão, empresa que possui 50% do capital e tem na Câmara de Castelo Branco o seu maior cliente público. Já este mês Luís Correia assinou com um seu representante um contrato para transportes públicos no valor de 83 302 euros. Em Setembro do ano passado assinou outro por 259.843 euros. O mesmo contrato contemplou igualmente a Rodoviária da Beira Interior, a maior transportadora da região, com a adjudicação de serviços no montante de 690.692 euros.

Quanto à Grincop, a Câmara de Castelo Branco entregou-lhe seis contratos, cinco dos quais por ajuste, desde o final de 2014 até agora. Parte deles foram assinados pelo próprio presidente e pelo seu antigo sócio José Manuel Capinha, enquanto que os restantes foram subscritos por este e pelo vice-presidente da autarquia.

A soma dessas adjudicações ronda os 90 mil euros, montante que vale perto de 25% das vendas da empresa a entidades públicas no mesmo período e cerca de 3% do seu volume total de negócios.

Não obstante tratar-se de um valor quase residual, não deixa de chamar a atenção o facto de entre os  únicos três contratos (daquele conjunto de seis) em que o município convidou mais do que uma entidade, haver dois em que, além da Grincop, foi convidada outra empresa de que José Capinha também é sócio e de que Luís Correia também já o foi.

Com esta empresa – a Netsigma - o município  não assinou qualquer contrato,  mas ela tem a particularidade de ter tido entre os seus sócios o socialista Luís Correia e o médico e empresário Fernando Jorge, que ainda mantem a sua quota na sociedade e é há muito uma figura destacada do PSD do distrito, além de ser presidente da Câmara de Oleiros. Luís Correia, por seu lado, cedeu os 17,5% que tinha nessa sociedade a José Capinha, no mesmo dia de 2003 em que lhe vendeu a sua participação na Grincop.

Para lá das suas ligações à Strualbi e à Grincop, a família de Luís Correia controla a Rendiconta, um gabinete de contabilidade que não tem negócios com a Câmara de Castelo Branco, mas trabalha para entidades por ela participadas, ou com as quais tem estreitas relações. É o caso da associação Inovcluster, criada pelo município em 2009 e da qual Luís Correia foi presidente até ao final do ano passado.

Entre os seus clientes sujeitos ao Código dos Contratos Públicos, por via da participação do Estado no seu financiamento, encontram-se igualmente a Escola Tecnológica Profissional Albicastrense (que funciona num edifício do município), de que Luís Correia foi director financeiro, e a Escola Profissional de Idanha-a-Nova, da qual o autarca foi director.

O capital da Rendiconta é partilhado por Luís Correia (com uma quota pessoal de 16,9%), pelo pai e pela imobiliária Casabrigada, pertencente à família.

O PÚBLICO pediu ao autarca um comentário acerca das relações existentes entre a Câmara a que preside e as empresas detidas por ele e pela família, à luz da legislação em vigor, mas Luís Correia limitou-se a dizer que os contratos que assinou com a Strualbi foram  um “lapso evidente e ostensivo”.