Retoma ou recessão? Qual a melhor altura para pôr as contas públicas em ordem?
Finanças públicas débeis são mesmo como os carros usados. Se não lhes dermos a atenção devida quando as coisas vão bem e nos é mais conveniente, acabamos por ter de tratar deles quando deixam de funcionar e nos é muito mais inconveniente.
Começo por declarar que sei muito pouco sobre mecânica automóvel. Sempre tive carros usados e com significativa quilometragem que bem cedo me ensinaram uma valiosa lição que tão bem me tem servido na vida. Ou agendo uma manutenção regular quando me for mais conveniente, ou então ver-me-ei obrigado a levá-lo ao mecânico quando menos me convém e com todas as arrelias que daí resultam. Como não há qualquer dúvida que, mais cedo ou mais tarde, o meu carro vai exigir a minha atenção, é tudo uma questão de saber quem controla o momento da reparação - se eu ou o meu carro.
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Começo por declarar que sei muito pouco sobre mecânica automóvel. Sempre tive carros usados e com significativa quilometragem que bem cedo me ensinaram uma valiosa lição que tão bem me tem servido na vida. Ou agendo uma manutenção regular quando me for mais conveniente, ou então ver-me-ei obrigado a levá-lo ao mecânico quando menos me convém e com todas as arrelias que daí resultam. Como não há qualquer dúvida que, mais cedo ou mais tarde, o meu carro vai exigir a minha atenção, é tudo uma questão de saber quem controla o momento da reparação - se eu ou o meu carro.
Mas esta coluna é sobre uma questão importante da política económica, em particular sobre a condução das finanças públicas em bons e em maus anos em termos do desempenho da economia. Assim sendo, o que tem a ver com o que os meus automóveis usados me ensinaram tão cedo e à custa de tantas arrelias?
Para lá dos seus aspectos específicos e da sua profundidade, dado o enquadramento económico e financeiro internacional então vigente, a crise orçamental por que passámos na última década terá supreendido somente os observadores mais distraídos. Pelo menos desde a segunda metade da década de noventa que começaram a ser evidentes, primeiro os sinais de laxidão e depois de descontrolo das finanças públicas. Ao mesmo tempo, várias instâncias internacionais mostravam-se claramente descontentes com o rumo seguido. Fica, então, a questão de saber por que é que não se deu mais atenção à solidez das finanças públicas - na altura certa - algo que poderia ter evitado uma austeridade tão severa.
Esta questão é histórica mas não é de todo retórica. Prende-se, obviamente, com a postura de sucessivos governos em diferentes fases dos ciclos económicos. Mas mais especificamente, prende-se com a orientação que o actual governo em funções deve dar às finanças públicas nos dias de hoje, agora que o desemprego continua a baixar e a economia volta a crescer.
Comecemos por entender o comportamento típico de uma família ao longo dos altos e baixos do ciclo económico. Quando é que estamos mais dispostos a comprar um carro novo? Ou fazer aquelas férias que sempre sonhámos? Ou endividarmo-nos um pouco mais para desfrutar do que a vida tem de melhor? Ou tolerar um pouco mais de risco nas nossas decisões? Tipicamente, o cidadão comum é optimista e exuberante nas suas decisões quando as coisas vão bem, e é pessimista e retrai-se mais quando as coisas vão menos bem. O mesmo é verdade quanto às empresas. Quando é que estão mais dispostas a criar novas oportunidades de emprego? A investir em novas instalações ou tecnologias? Em assumir mais riscos em projectos mais ousados? Mais uma vez, quando a economia evolui favoravelmente, as empresas tendem a actuar de forma mais optimista e ousada e em tempos de recessão de forma mais pessimista e retraída.
Dada a natureza das suas percepções, os comportamentos quer das famílias quer das empresas tendem a acompanhar o ciclo económico. E é precisamente por essa razão que os comportamentos por parte do Estado devem ser de natureza contra-cíclica, amortecendo, assim, os impactos negativos sobre a actividade económica, sempre que o sector privado se retrai. Quando os agentes privados gastam menos, em sintonia com uma desaceleração da economia, deve competir ao Estado intervir de forma expansionista, aumentando o consumo e ou investimento públicos ou aliviando a carga fiscal sobre as famílias e as empresas, de modo a contrabalançar os seus comportamentos.
Contudo, especialmente durante períodos de expansão económica, uma política contra-cíclica por parte do Estado não vai ao encontro das naturais expectativas dos agentes privados. De facto, nesta fase do ciclo, porque a economia está a crescer, tendem a ser mais tolerantes quer em relação ao agravamento da dívida pública, quer em relação a uma despesa pública mais questionável. Por todas estas razões, reagem mal a uma política orçamental contraccionista em tempos de expansão, mesmo quando é precisamente essa a orientação prescrita por uma política contra-cíclica.
Assim sendo, é compreensível que governos politicamente débeis e sem uma estratégia de médio prazo para Portugal assumam comportamentos indesejavelmente expansionistas em tempos de expansão, apenas para satisfazer os seus eleitores que vivem só para o presente. Esta situação não anula a necessidade de agir de forma contra-cíclica quando uma recessão chega, sendo obrigado a gastar mais em subsídios de desemprego e vivendo com menos receita fiscal porque a actividade económica entretanto retraiu. A prazo, o que resulta é a tendência para aumentar o peso da despesa pública no PIB, independentemente das circunstâncias económicas.
O que se segue é tão óbvio quanto é inevitável. Mais cedo ou mais tarde, as finanças públicas implodem e a dívida pública torna-se insustentável, o que leva a mais um resgate por parte das instâncias internacionais. Em traços muito largos, esta tem sido a história das nossas finanças públicas nas últimas quatro décadas. E note-se, que o que tem implicado é a necessidade terrível de, no meio de uma recessão, ter de reduzir o défice orçamental ao mesmo tempo que se é obrigado a implementar políticas económicas inevitavelmente recessivas, como aumentar impostos ou cortar despesa pública. Se mais não aprendemos com a crise da última década, pelo menos esta lição deve ser óbvia. Ter de endireitar as finanças públicas durante uma crise é extrema e desnecessariamente doloroso.
E agora, de volta ao presente. Agora que a economia retomou o tão almejado crescimento, qual deverá ser a postura do Estado em termos das contas públicas? A resposta à luz desta discussão é óbvia. Agora que as coisas estão a correr bem do ponto de vista do desempenho económico, e os mais óbvios exageros na austeridade implantada pelo governo anterior estão corrigidos, o Estado deve dar prioridade a arrumar a casa e colocar as contas públicas em ordem.
Mas ... temos eleições a aproximarem-se. E agora que as coisas estão no bom caminho do ponto de vista económico os eleitores não sentem a necessidade de apertar o cinto público e tenderão a votar em conformidade. Temos então a avizinhar-se uma contradição entre o que é apropriado o Estado fazer e o que poderá vir a ser politicamente conveniente fazer, dado o estado de espírito dos cidadãos. Neste contexto, precisamos de políticos, quer no governo quer na oposição, com a coragem, a visão e o sentido de Estado que lhes permitam fazer o que é necessário para o país agora que é apropriado tal fazer - ainda que isso não seja a opção mais popular. A alternativa a esta coragem e este sentido de Estado deve ser também clara para todos: o ter de lidar com nova crise orçamental e quem sabe um novo resgate internacional num futuro não necessáriamente muito longínquo.
Em jeito de conclusão, afinal finanças públicas débeis são mesmo como os carros usados. Se não lhes dermos a atenção devida quando as coisas vão bem e nos é mais conveniente, acabamos por ter de tratar deles quando deixam de funcionar e nos é muito mais inconveniente.