Como o jogo mais bonito ficou tão feio
Miguel Poiares Maduro foi presidente do Comité de Governação da FIFA, criado em 2011 para reformar e reforçar a transparência deste organismo que tutela o futebol a nível mundial. O ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional entrou para a FIFA no início de 2016, no rescaldo da saída de Joseph Blatter, na sequência de vários casos de corrupção. Cerca de um ano depois, Maduro saiu afirmando que este organismo "não está preparado para um escrutínio independente". "De pouco servirá apanhar algumas maçãs podres se a árvore que as produz continuar de pé", alerta nesta reflexão.
A semana que passou foi a mais triste da história do meu clube. É impossível descrever a vergonha e tristeza que senti com as agressões perpetradas por adeptos contra atletas e técnicos do Sporting. Nos últimos dias tive oportunidade de exprimir o que sinto sobre o que se passou. Este texto não é (apenas) sobre isso. É sobre a cultura que o promove e a abordagem pública e cívica que o tem tolerado. Esta não é a primeira vez que a violência desportiva se manifesta. Já tivemos adeptos mortos (ainda recentemente). Já tivemos invasões de estádios e centros de treino. E as ameaças a atletas e árbitros são uma constante dentro e fora dos estádios. A diferença, neste caso, é o contexto em que ocorreu e a relação estabelecida com o comportamento de um presidente. A cobertura mediática que se seguiu obrigou responsáveis desportivos e políticos a pronunciar-se: dizem-nos agora que o futebol tem um problema e esse problema chama-se “violência no desporto”.
Infelizmente, no entanto, a violência é apenas a manifestação mais extrema de uma doença profunda que ocupa o “corpo” do futebol há bastante tempo. Os sintomas têm-se multiplicado. Campeonatos do mundo atribuídos através de votos comprados; jogos viciados através da compra de jogadores ou árbitros; doping organizado e, nalguns casos, promovido por Estados; evasão fiscal; lavagem de dinheiro; e até funcionários judiciais corrompidos por agentes desportivos. Estes são alguns exemplos de processos judiciais que envolvem atualmente o futebol. Dos EUA à França, passando por Portugal, organismos de investigação criminal e magistrados têm tornado público uma pequena parcela do lado sujo daquele que durante tantos anos pensámos ser o jogo mais bonito. Mas a expressão criminal é apenas o estado mais avançado da doença ética e moral que domina a cultura do futebol.
A multiplicação destes casos evidencia um problema sistémico que necessita de uma resposta sistémica. Por um breve momento, depois de as investigações criminais americanas terem removido alguns dos líderes da FIFA em finais de 2015, pareceu possível que o próprio futebol encontrasse essa resposta. Fiz parte desse esforço, ao liderar o novo comité de governação da FIFA por um breve período. Tínhamos a responsabilidade de promover o processo de reforma e implementar princípios de boa governação e integridade. Sabíamos que não seria fácil mudar uma cultura profundamente enraizada e procurámos ser graduais e pedagógicos. Mas não aceitámos derrogar dos princípios cuja promoção e proteção nos tinha sido confiada e, muito menos, como nos apercebemos ser prática estabelecida no futebol, fazer uma aplicação seletiva das regras consoante quem estivesse em causa. Quer eu, quer os meus colegas já tornámos público alguns dos problemas que enfrentámos. Com a Confederação Asiática, porque não tolerámos eleições que discriminavam contra as mulheres. Com a Confederação Africana, porque fomos forçados a intervir face a fortes suspeitas de viciação eleitoral. Dois de vários exemplos possíveis ao mais alto nível. A tensão atingiu um ponto de ruptura quando o próprio presidente da FIFA procurou forçar-nos a considerar elegível para o conselho da FIFA o vice-primeiro-ministro da Rússia (recentemente considerado responsável de doping de Estado), em clara violação da regra que impõe aos dirigentes do futebol neutralidade face aos governos. Foram poucos meses, mas intensos. A conclusão a que cheguei com os meus colegas: o futebol não se reformará a si mesmo.
Como chegámos aqui? Um hardware velho para um novo software
A sucessão de casos judiciais que afectam o futebol tem levado muitos a falar da perda da sua inocência. Infelizmente, o futebol já não é inocente há muito tempo. Clubes e federações começaram como associações amadoras (gentlemen clubs na expressão inglesa original). Desde então, o futebol transformou-se numa das mais importantes atividades económicas e sociais sem que o seu modelo e cultura de governo tenham evoluído muito. É como procurar instalar um software novo num velho computador.
É difícil medir com precisão o peso do futebol no PIB, mas um estudo recente indicava como sendo 3,5% do PIB europeu. Algumas das empresas que mais têm crescido no Top 500 das maiores multinacionais são empresas desportivas. A FIFA é, ela mesma, uma enorme multinacional. A audiência de um Campeonato do Mundo ronda os 40 mil milhões de pessoas e só as receitas televisivas do mundial podem chegar aos 5 mil milhões de euros. Imagine este enorme mercado, noutro sector económico, sujeito ao monopólio de uma empresa. Junte a isso a atribuição, a essa empresa, do poder de decidir que outras empresas podem aceder e ter parcelas desse mercado, as regras a que ficam sujeitas, quem as pode dirigir, como e quando funcionam, e até os “tribunais” que decidirão os litígios que as envolvam. Inconcebível? É esse o caso do futebol. Uma das atividades de maior relevância económica e social está nas mãos de uma organização privada, praticamente isenta de escrutínio público. Isto não podia dar bom resultado.
Aquilo que as autoridades judiciais têm vindo a revelar ou acontecimentos públicos como os desta semana tornam evidente que estamos perante uma cultura bem mais profunda, que não é objeto de escrutínio externo. Tal como no domínio da política, o risco é o de, em vez de discutirmos e reformarmos esta cultura, nos limitarmos a tratar estas questões como patologias criminais. Quando estes comportamentos são tão frequentes, eles não são, infelizmente, patologias. São antes reveladores da identidade do sistema. Os comportamentos criminais têm de ser tratados nos tribunais, mas, a montante desses comportamentos, está uma cultura de governo do futebol que promove e protege esses comportamentos (tornando, inclusive, mais difícil a sua investigação). Esta situação também afeta a integridade do futebol muito para lá da dimensão criminal. De pouco servirá apanhar algumas maçãs podres se a árvore que as produz continuar de pé.
Futebol e poder I: o cartel político do futebol
Na origem dos problemas do futebol está uma enorme concentração de poder sem mecanismos independentes de controlo e fiscalização. A consequência é uma cultura frequentemente autoritária, pouco transparente, permeada de conflitos de interesse e onde a aplicação das regras é seletiva, o contrário de uma comunidade de direito (onde todos devem estar sujeitos, de forma igual, às mesmas regras).
Desde os clubes até à FIFA é comum a permanência no poder por períodos que fariam morrer de inveja muitos ditadores. Os últimos presidentes da FIFA exerceram o poder durante 24 anos (Havelange) e 17 anos (Blatter). Blatter só saiu quando “forçado” a tal por uma investigação criminal norte-americana. Já a investigação tinha atingido o coração da sua liderança e Blatter foi reeleito em congresso, por larga maioria. Nos nossos clubes de futebol, Jorge Nuno Pinto da Costa exerce o poder há 36 anos e Luís Filipe Vieira há 15 anos. Tivesse Bruno de Carvalho sido menos explícito nos seus instintos e poderia, provavelmente, aspirar a igual percurso. A alternância no poder é praticamente inexistente no futebol. E onde são introduzidas regras de limitação de mandatos ou estas são ignoradas ou transformadas numa rotatividade apenas aparente: sempre os mesmos alternando nas posições que ocupam ou organizando a sua própria sucessão...
O que mais explica a consolidação do poder é a pouca representatividade e rotatividade do universo eleitoral do futebol, associada, paradoxalmente, à sua aparente fragmentação. O mundo do futebol é um clube fechado. Divide-se entre os insiders e os outsiders e ninguém “entra” sem “autorização” da casta dirigente. Ao mesmo tempo, o carácter fragmentado e difuso do poder das associações e federações (cada uma com poder igual, independentemente da sua representatividade) promove a concentração do poder e permite uma fácil captura desses diferentes agentes pela casta detentora do poder. Invocando uma representatividade da base para o topo (das associações até à FIFA passando pelas federações e confederações) o poder do futebol é, no entanto, exercido do topo para a base (através dos favores e influencia distribuída pelas autoridades do futebol ao longo da cadeia de poder). O futebol é, na prática, um cartel político. Mesmo existindo no seu seio pessoas extremamente competentes, pouco podem fazer para mudar a sua cultura de governo perante este cartel político. Vários altos dirigentes me reconheceram que nada podem fazer ou dizer sob pena de eles (e os seus países e clubes) sofrerem retaliações. Esta estrutura de poder é depois, frequentemente, reproduzida a nível nacional.
O poder e o futebol II: o poder é absoluto e não há separação de poderes
Quem obtém o poder obtém o poder absoluto. Richard Pound (um dos mais respeitados dirigentes mundiais do desporto e dos poucos que promoveram a sua reforma com a criação da agência independente para o doping) defende que um dos maiores problemas na organização desportiva é a total concentração de poder no presidente. O conceito de separação de poderes é estranho ao mundo do desporto. O presidente, uma vez assumido o poder, concentra, de forma direta ou indireta, praticamente todas as funções. É assim na FIFA como é assim no Benfica, Porto ou Sporting.
Vários projetos de reforma da governação desportiva têm frisado a importância de as atividades comerciais, administrativas ou de gestão estarem separadas da direção política. Isto é necessário para evitar quer o risco de conflitos de interesse na gestão e atribuição de contratos, quer a apropriação de fundos ou a sua distribuição para fins de manutenção do próprio poder. A razão pela qual os presidentes da FIFA ou confederações têm vindo a multiplicar as competições desportivas, mesmo quando desportivamente pode não fazer sentido, é porque necessitam de mais dinheiro para alimentar a clientela política (e económica) que sustenta o seu poder. Esta ausência de separação de poderes e responsabilização política é patente nos congressos da FIFA ou confederações. Não há intervenções dos delegados e muito menos vozes dissonantes. As votações são dignas da Coreia do Norte.
Tão ou mais importante é a circunstância de os órgãos desportivos disciplinares, arbitrais e “judiciais” estarem na dependência do poder político do futebol. Desde logo, por serem muitas vezes compostos por pessoas provenientes ou (mesmo) exercendo funções nos organismos do futebol que eles mesmos são supostos controlar. Tal circunstância impede um efetivo escrutínio interno e uma aplicação independente e isenta das regras. São inúmeros os casos de aplicação seletiva das regras, consoante os interesses do poder político do futebol. A independência destes órgãos é também afetada por outros fatores: não têm staff próprio (funcionando, frequentemente, na dependência da administração e poder político que é sua responsabilidade controlar); a sua permanência em funções depende quase sempre de uma decisão política (por outras palavras, aqueles que os titulares destes órgãos devem escrutinar são os mesmos que depois decidem o destino desses titulares...); e não é habitual estarem sujeitos a períodos de “nojo” depois do exercício de funções, sendo frequente ver pessoas que exerceram funções neste órgãos ir a seguir trabalhar para associações ou clubes sobre quem antes tomaram decisões.
Não pretendo com isto fazer um juízo negativo sobre todos aqueles que exercem estes cargos no futebol, da mesma forma que a existência de ameaças à independência da magistratura num Estado não coloca em causa a honorabilidade de todos os juízes desse Estado. Estes serão, seguramente, os primeiros interessados em proteger a sua credibilidade e independência. As regras de uma instituição não se substituem à ética e integridade daqueles que nela exerçam funções. Servem, no entanto, precisamente para proteger os que as exercem com ética e integridade e excluir os que não o pretendam fazer dessa forma.
Acresce que as decisões destes órgãos não são, em regra, recorríveis para os tribunais comuns, mas sim para sistemas de arbitragem, cuja independência e credibilidade é também ela fortemente contestada. No topo desta pirâmide está o CAS (Tribunal Arbitral do Desporto). Neste, a maioria dos seus membros continuam a ser indicados de forma pouco transparente e através de um conselho dominado pelas próprias federações desportivas. Acresce que a motivação das suas decisões é publicada de forma seletiva e sem aparentes critérios objetivos. A conformidade deste sistema com o princípio do acesso à justiça será, aliás, brevemente julgada num processo perante o tribunal constitucional alemão.
A normalização dos conflitos de interesses
Os conflitos de interesse são generalizados e atravessam toda a atividade do futebol. Eles são de tal forma comuns que foram, frequentemente, institucionalizados e não se questionam. Como mencionei, existem na acumulação de diferentes cargos dirigentes, passados e futuros, permitindo, por exemplo, que regulador e regulado sejam frequentemente o mesmo. Outro fenómeno corrente é a presença, por exemplo no comité de desenvolvimento da FIFA (que determina a distribuição de centenas de milhões de euros), de pessoas com interesses económicos que podem vir a beneficiar das decisões desse comité. Foi por isso que, com os meus colegas do comité de governação, tinha suscitado a necessidade de um registo de interesses e um processo de recusa dessas decisões. Mas estes problemas não se limitam aos órgãos de governo do futebol. São conhecidos os conflitos de interesse em que é exercida a atividade dos agentes do futebol, por exemplo na própria gestão da carreira de um jogador ou na relação entre essa atividade e outros interesses económicos (incluindo com e em clubes de futebol). São também crescentes os casos de concentração numa mesma pessoa ou empresa da propriedade ou domínio económico e desportivo sobre diferentes clubes de futebol que podem competir entre si ou influenciar a competição com outros clubes. Os conflitos de interesse são também comuns entre presidentes de clubes e entre estes e outros interesses económicos e desportivos.
Em Portugal, por exemplo, é considerado normal clubes contratarem jogadores apenas para serem emprestados a outros clubes como forma de ganhar influência sobre estes últimos. É igualmente frequente que aqueles que decidem sobre o jogo tenham conflitos de interesses não declarados com alguns dos participantes no jogo. Esta é, na sua dimensão desportiva, uma forma institucionalizada de influenciar o próprio jogo. Numa atividade em que a dimensão subjetiva, na prática do jogo ou na sua avaliação arbitral ou disciplinar, é tão forte tornou-se natural (ainda que não ético) procurar influenciar o jogo através dessa dimensão: vamos “colocar os nossos” em posições de influência. Não é necessário existir corrupção, basta existir conflito de interesses para que o enviesamento seja possível e a integridade do jogo fique em causa.
Estes conflitos de interesse estendem-se à relação com a política. Os políticos não estão proibidos de ter outros interesses. Devem poder amar o jogo. Mas enquanto estão na política não devem poder estar no futebol. Para a política estar em posição de garantir a necessária supervisão e escrutínio público sobre o futebol não pode misturar-se (e muito menos confundir-se) com ele. Curiosamente, os próprios estatutos da FIFA impõem essa separação e neutralidade, mas, mais uma vez, são aplicados de forma seletiva. A FIFA não hesita em ameaçar excluir das suas competições um Estado em que os tribunais intervenham para repor a legalidade numa federação, mas, quando lhe convém, aceita que os seus órgãos e os das suas federações estejam cheios de titulares de cargos políticos. Ainda mais surpreendente é a cumplicidade do sistema político, mesmo em democracias e Estados de direito consolidados. Um dos casos com que lidámos no comité de governação dizia respeito a um deputado do Parlamento Europeu proposto para um comité da FIFA. Surpreendeu-me que o próprio Parlamento não considerasse tal cargo incompatível.
O futuro não é promissor...
O que mais impressiona em tudo isto é a normalidade com que se vive e se aceita esta cultura, assente num conflito de interesses sistémico, gerador de uma profunda falta de integridade. Ao cartel político que controla o poder juntam-se as falhas do modelo de governação que poderia limitar e escrutinar tal poder. Tudo reforçado pela pouca capacitação de muitos dos agentes desportivos. Esta é a cultura que conhecem e determina a sua escala de valores e padrões de comportamento. Quando o mundo em que se “nasce” e se tem sucesso funciona de acordo com certas “regras”, não se questionam as regras, mas quem não tem sucesso com elas. Para uma grande maioria dos agentes do futebol, não existe um problema no seu mundo, são os outros que não o percebem. Ainda esta semana Platini reconheceu (desvalorizando, “porque os outros também o fazem”) que a França tinha adulterado o sorteio do Campeonato do Mundo que venceu, em 1998. Para ele, tratou-se de uma pequena vigarice num mundo de grandes vigarices. A normalidade com que contou este episódio diz tudo sobre a cultura dominante no futebol. Há, naturalmente, pessoas sérias e competentes no futebol, mas, como em qualquer outro cartel, mesmo os que desejariam ser diferentes, para sobreviver, não podem colocar em causa a cultura em que vivem.
Estes problemas têm vindo a agravar-se por três razões. Primeiro, as transformações mediáticas e digitais têm mudado a natureza do discurso público, amplificando os conflitos e a violência verbal. A cultura dominante do futebol não mudou, mas tornou-se mais visível e agressiva. Ao mesmo tempo, num mundo mediático, as pressões e influências também se exercem por via comunicacional. O futebol não é hoje mais sujo do que há 20 ou 30 anos. Mas a sujidade é hoje usada, sem vergonha, como arma comunicacional de influência sobre o lado subjetivo do jogo. Em Portugal, esta dimensão é exacerbada pela importância e número de canais noticiosos que, perante fortes constrangimentos financeiros, têm no modelo dos “debates-espetáculo” um programa de baixo custo e boas audiências. Segundo, o aumento do negócio do futebol, sem correspondente aumento dos instrumentos de escrutínio e controlo, gerou ainda mais incentivos para comportamentos pouco éticos e criminosos. Um exemplo óbvio é o impacto do jogo e apostas online. Terceiro, as novas regras financeiras e dos direitos televisivos têm agravado o diferencial competitivo entre clubes. Nas ligas pequenas e médias (como a portuguesa), o clube (ou clubes) que tenha acesso à Liga dos Campeões beneficia de uma enorme vantagem competitiva (em termos financeiros). Isto gera incentivos perversos para conseguir obter essa vantagem decisiva. E, uma vez obtida, o risco de ela se autoalimentar e consolidar é enorme.
Está demonstrado que, com a crise do sistema financeiro, os clubes perderam a “garantia implícita” de sobrevivência que lhes vinha de um acesso fácil ao crédito bancário. Hoje, tal já não existe. As falências de clubes, algo muito raro ou inexistente até recentemente, tornaram-se possíveis. As regras de fair play financeiro foram introduzidas para responder a este problema, mas têm, ao mesmo tempo, agravado o diferencial competitivo entre clubes. Campeonatos desequilibrados reforçam também os incentivos perversos e a probabilidade de influência dos clubes grandes sobre os clubes mais pequenos, seja através da distribuição de poder político, seja através de apoio financeiro, mais ou menos transparente, oferecido a esses clubes ou aos seus atletas. A ausência de mecanismos eficazes de redistribuição dos ganhos do futebol entre clubes e entre ligas reduz assim a competitividade, criando, ao mesmo tempo, incentivos adicionais à corrupção.
Há solução ou tudo muda para ficar na mesma?
A minha conclusão e de outros responsáveis (vejam-se, por exemplo, relatórios recentes do Conselho da Europa ou do Parlamento britânico) é de que o futebol será incapaz de reformar a sua própria cultura. Isto não quer dizer que, dentro do futebol, não existam pessoas com a competência e até vontade de empreender reformas. No entanto, o cartel político que o domina e o conflito de interesses sistémico em que assenta impedem que isso aconteça. Qualquer liderança política do futebol que tentasse seriamente reformá-lo seria rapidamente substituída. Essa liderança depende precisamente daqueles que deveria reformar... A verdadeira mudança sistémica só acontecerá se imposta de fora.
Eis algumas propostas concretas para mudar o modelo de governo do futebol:
• Obrigações acrescidas de transparência, financeira e de governação, e criação de registo de interesses;
• Proibição de acumulação de quaisquer funções políticas com funções no futebol;
• Órgãos de controlo e supervisão genuinamente independentes. A garantia desta independência exigiria, nomeadamente: mandatos mais longos e não renováveis; controlo da sua independência no início do mandato e proibição, após o termo de funções, em trabalhar durante três anos para qualquer entidade do futebol que tenha estado sob a sua jurisdição; um gabinete e administração própria e autónoma;
• O aumento da credibilidade e independência dos processos de decisão e governo do futebol legitimaria, por sua vez, uma muito maior exigência na punição do uso de linguagem violenta por parte dos agentes do futebol;
• Limitação dos mandatos (incluindo para presidentes de clubes);
• Processo de avaliação da integridade e incompatibilidades dos dirigentes do futebol;
• Sistema independente de avaliação de conflitos de interesse para dirigentes, mas também para agentes e proprietários de clubes;
• Criação de códigos de ética aplicáveis a todos os agentes desportivos;
• Alargamento da capacidade eleitoral nas eleições para os órgãos das associações e confederações, nomeadamente através da representação de adeptos e a obrigatoriedade de uma maior representação de mulheres (combatendo a profunda discriminação que existe no futebol e contribuindo, ao mesmo tempo, para romper o cartel político atual);
• Controlo independente da integridade dos processos eleitorais e do financiamento das campanhas (por exemplo, uma campanha para a FIFA custa mais de um milhão de euros e ninguém sabe quem, e com que motivação, as financia);
• Redistribuição financeira entre clubes para aumentar a competitividade e reduzir os incentivos à corrupção e aos conflitos de interesse (esta redistribuição pode estar associada a formas de tributação — por exemplo das transferências — ou a uma centralização dos direitos televisivos; esta última já acontece nalgumas ligas e na Liga dos Campeões, mas, neste último caso, o modelo de redistribuição não promove a competitividade, pelo contrário, violando, na minha opinião, a decisão da Comissão Europeia que o autorizou).
Estas reformas deveriam ser introduzidas (na medida em que sejam aplicáveis) a todos os níveis do futebol, da FIFA aos clubes. Boa parte delas podem, naturalmente, ser voluntariamente adotadas pelas próprias organizações desportivas. Pelas razões que mencionei, a probabilidade de que isso aconteça é, no entanto, praticamente nula. A tentativa de o fazer na FIFA fracassou. Também não o vejo suceder a nível local. Não porque Fernando Gomes ou Pedro Proença não fossem favoráveis (não conhecendo, em detalhe, o seu pensamento sobre estes temas, acredito que são pessoas sérias e têm consciência destes problemas) mas porque os clubes e associações de que dependem vivem na (e da) cultura de futebol que é contrária a estas mudanças.
É por esta razões que, quer eu, quer os meus ex-colegas do comité de governação da FIFA, quer os relatores do Conselho da Europa, temos defendido que é fundamental uma intervenção externa sobre o mundo do futebol. Não para tomar conta do futebol, mas para garantir que os seus organismos e agentes atuam de acordo com certos princípios fundamentais de boa governação. Defendemos, nomeadamente, a criação de uma agência europeia independente que desenvolva esses princípios e supervisione a sua aplicação. Nenhum Estado tem o poder, sozinho, para conseguir regular as organizações transnacionais do desporto. A FIFA ameaçará seguramente de exclusão o Estado que o procure fazer. Mas já não o fará com a União Europeia, que representa 28 Estados. O equilíbrio de poder altera-se. Este é um domínio em que a UE pode demonstrar o seu valor acrescentado, impondo algum escrutínio público sobre uma área isenta de qualquer regulação séria neste momento.
O ideal seria o modelo de regulação nacional corresponder a este modelo transnacional. Nada impede, aliás, que algumas destas reformas sejam já introduzidas a nível nacional. O mesmo nos clubes. Acho que o meu clube, o Sporting, deveria transformar esta profunda crise numa oportunidade de repensar o seu modelo de governação, seja na limitação do poder presidencial, nos instrumentos de controlo e separação de poderes, ou na introdução de mecanismos de supervisão interna de integridade, conflitos de interesse e compliance. Com isso virá, também, acredito, um prazer pelo jogo que esteja mais associado à nossa vitória do que a derrota dos outros. Num jogo, a vitória conta e como. Mas, no futebol português, aconteceu uma perversão: o prazer da vitória parece depender sobretudo da derrota que se impõe aos outros...
No Sporting sempre nos afirmámos diferentes e por vezes associámos a nossa dificuldade em vencer a essa diferença. Será terrível se descobrirmos que afinal nem ganhamos tanto nem somos assim tão diferentes. Temos de ter vontade de ganhar, mas começar a ganhar sendo genuinamente diferentes.
Milhares de milhões de pessoas amam o futebol. E, no entanto, não têm nenhum poder efetivo sobre o seu governo. Enquanto tal acontecer, e ninguém agir em seu nome, o futebol irá continuar a ficar cada vez mais feio.
Diretor da School of Transnational Governance, European University Institute, Ex-Presidente do Comité de Governação da FIFA.
O autor escreve segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico.