A Câmara Municipal de Lisboa está a construir uma colecção de arte que não é para ficar nos gabinetes
Em dois anos de ARCOlisboa, a autarquia comprou obras de 21 artistas portugueses, num investimento total de 150 mil euros. Para as mostrar, e dar o exemplo a outros coleccionadores privados e instituições, reuniu-as numa exposição.
Vinte e um artistas portugueses, dois anos de compras, 150 mil euros. E uma voz que nos recebe à entrada, serena e em inglês, fazendo um pedido que muitos já terão feito ou pensado fazer num museu ou numa galeria: “Importa-se de se desviar um pouco para que eu possa ver?”
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Vinte e um artistas portugueses, dois anos de compras, 150 mil euros. E uma voz que nos recebe à entrada, serena e em inglês, fazendo um pedido que muitos já terão feito ou pensado fazer num museu ou numa galeria: “Importa-se de se desviar um pouco para que eu possa ver?”
A voz é da artista Luísa Cunha e sai de um altifalante pendurado na parede, a menos de um metro do chão, na antecâmara de Campo de Visão, a exposição que lhe “rouba” o nome e em que se mostram as obras adquiridas nas edições 2016 e 2017 da ARCOlisboa para o Núcleo de Arte Contemporânea da Câmara Municipal de Lisboa.
Se fosse inaugurada esta segunda-feira, e o objectivo continuasse a ser dar a ver as peças compradas pela autarquia em todas as edições da feira, o espaço teria de ser maior, de modo a poder incluir trabalhos de Henrique Pavão, Hugo Canoilas, Carla Filipe, Francisco Tropa, Miguel Branco, Bruno Cidra, André Cepeda ou da jovem Rita Ferreira, entre outros, seleccionados este ano pela comissão encarregue de decidir o que adquirir na ARCOlisboa.
“Esta exposição cumpre vários propósitos e um deles é mostrar o que a câmara está a comprar com dinheiros públicos através deste programa que quer ser um incentivo ao coleccionismo das instituições e dos privados”, diz ao PÚBLICO Sara Antónia Matos, directora do Atelier-Museu Júlio Pomar e das Galerias Municipais, que partilha o comissariado de Campo de Visão com Pedro Faro.
Organizar o que se pôde ver até este domingo no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional não foi tarefa fácil porque não era óbvia a maneira como as peças podiam dialogar umas com as outras no espaço, explicam ambos, mas o resultado acabou por agradar muito aos artistas.
Diversidade e mais diversidade
A montagem de Campo de Visão pôs um díptico a preto e branco de Paulo Nozolino que associa morte, ruína e fotografia a desafiar o amarelo de uma estrela que Rui Toscano pintou; as tendas de João Marçal e os quatro blocos de alvenaria de um edifício recentemente demolido de que Fernanda Fragateiro se apropriou; e a escultura de Ângela Ferreira em que a artista habituada a trabalhar a partir do universo colonial e pós-colonial invoca os direitos humanos e a liberdade de expressão numa homenagem ao jornalista moçambicano Carlos Cardoso, assassinado em 2000.
“A ideia é escolher artistas que estejam em diversas fases das suas carreiras. Podem ser muito jovens ou absolutamente consagrados, podem ter um percurso já sólido mas estar num ponto em que precisam de uma alavancagem”, diz a comissária. E isto obedecendo a critérios pré-definidos que pretendem assegurar a diversidade de artistas, de géneros, de estilos e de galerias representados.
Todos os anos, explica Pedro Faro, a comissão composta pelo teórico da fotografia Sérgio Mah, o pintor Manuel Costa Cabral, o crítico Luís Porfírio, a directora do Museu de Lisboa, Joana Sousa Monteiro, e a própria Sara Antónia Matos percorre a feira para fazer as suas escolhas. “Queremos que haja uma multiplicidade de suportes e temos tentado não repetir artistas nem galerias, o que só é possível porque só agora começámos. Isto das galerias é importante, porque o programa quer ser também um estímulo à parte comercial.”
A “multiplicidade de suportes” também é para levar a sério – nas compras deste ano há vídeos de Mariana Silva e de Henrique Pavão porque a imagem em movimento ainda não tinha sido contemplada. “Não tem sido difícil chegar a um consenso dentro da comissão. Quando ele não existe, a peça fica de fora”, acrescenta a directora das cinco galerias municipais.
O programa de aquisições que está a criar este Núcleo de Arte Contemporânea – a palavra “colecção” não tem sido usada para agrupar estas obras “mas lá se há-de chegar” — foi criado para o triénio 2016-2018 com um fundo de 200 mil euros que Fernando Medina, o presidente da câmara, estendeu para os 250 mil no arranque desta edição da feira. Os comissários não sabem ainda se esta medida de incentivo a artistas, galerias e coleccionadores é para continuar, mas esperam que sim.
“Não há um tecto definido, mas nestes três anos tentámos que o preço das obras não ultrapassasse os dez mil euros, para podermos comprar um número significativo”, diz Pedro Faro. Este valor máximo também permite mostrar aos potenciais coleccionadores, institucionais ou não, que não é preciso uma soma astronómica para levar para casa uma peça boa, acrescenta Sara Antónia Matos.
Até aqui as peças têm estado guardadas nas reservas do Museu de Lisboa, mas a ideia é que venham a circular pelos espaços da autarquia e de outros museus e galerias. “Esta colecção não está a ser feita para ficar nos gabinetes [da Câmara], embora isso possa acontecer aqui e ali. Está a ser feita para que todos possam vê-la, para circular em exposições e museus.”
E tudo porque a arte, como pretendem demonstrar as obras de João Marçal expostas em Campo de Visão – o conjunto, diz Faro, compara a figura do alpinista à do pintor, os desafios de um aos desafios do outro –, também pode ser de cortar a respiração, “tal e qual como estar acima dos oito mil metros”.