Carvalhais, um baile de tradições e natureza

Aninhados entre serras e ribeiros, os ritmos do quotidiano de Carvalhais e Candal ainda se deixam marcar pelos compassos da natureza, das tradições e da memória. Agora, um novo festival quer resgatar esse património regional e acrescentar danças populares dos quatro cantos do mundo. Para bailar em Agosto e desvendar uma região para o ano todo.

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António Francisco conhece bem a cascata de moinhos que desce a ribeira de Contença, no Parque Florestal do Pisão, concelho de São Pedro do Sul. Os pais eram “proprietários de dois quinze avos” de um dos edifícios de granito, que é o mesmo que dizer que “de quinze em quinze dias eram os usufrutuários” do pequeno moinho. E ele, “umas vezes com mais vontade do que outras”, lá vinha, ainda miúdo, ajudar os pais, com sacas de milho ou ferramentas para picar as mós. Às vezes, deixavam-no subir à antiga casa do guarda-florestal, onde o irmão mais velho trabalhava a lavrar os lameiros. E o que ele gostava de andar por ali a brincar, conta-nos agora entre os carvalhos da propriedade, entretanto transformada em Bioparque, com área de campismo, piscina, zona de arborismo, slide e parque de merendas, entre outras valências.

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Dos moinhos, António conhece cada pedaço de madeira e de pedra que os faz funcionar. Mas confessa: “Nunca quis ser moleiro.” Toda a vida foi carpinteiro e é a madeira que lhe abre o sorriso no rosto. “Entre esta caleira e aquela vão pelo menos uns 60 anos de distância”, compara António, apontando para o tronco de árvore que, suspenso na horizontal, conduz a água aos rodízios do moinho. Aquela lá ao fundo já foi António que talhou a madeira e a instalou no lugar. Há cerca de um ano e meio regressou aos moinhos para trabalhar como responsável pela manutenção e pelas visitas guiadas aos turistas, durante as quais põe as mós a laborar.

Dos 13 edifícios concentrados ao longo da ribeira, seis foram integralmente recuperados e estão aptos a operar, mas a matéria-prima não dá para mais de três. “Há duas famílias aqui na região que têm plantações e que me trazem o milho para moer. Mas a quantidade não chega para ter mais a funcionar”, lamenta. Outrora a broa foi base da alimentação das populações rurais da região. Só na freguesia de Carvalhais, a que pertence Pisão, existia mais de uma centena de moinhos junto aos cursos de água. Com a mudança dos hábitos alimentares, o advento dos moinhos eléctricos e o sucessivo abandono das terras, no entanto, as plantações deixaram de chegar para nutrir tantos moinhos e a prática caiu em desuso no século XX. Os últimos, recorda, pararam na “década de 1980”.

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Os edifícios, aninhados entre a sombra do arvoredo e o entusiasmo da ribeira, pulando dos rochedos para formar pequenas lagoas, compõem agora um dos pontos de visita obrigatória da grande Rota da Pedra e da Água, que se estende ao longo de sete concelhos da região. O nosso percurso, no entanto, é bem mais curto. Atravessamos uma pequena ponte de madeira para espreitar uma cascata e a flora envolvente. “Aqui encontramos em abundância o feto real, ou fentelha, que é utilizado nas procissões”, indica agora Paulo Pereira, botânico e músico. Ao longo dos passeios dos próximos dias, será tão natural vê-lo enumerar cada planta pelo nome científico como ouvi-lo improvisar uma melodia num dos instrumentos de sopro que traz sempre na mochila. À beira do riacho, aponta para umas pequenas flores entre a vegetação: são violetas-do-rio, de pétalas mais claras, quase brancas.

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Recuperar a herança do Andanças

O reencontro com a natureza e com as tradições da região é uma das componentes essenciais do Tradidanças, um festival que teve “o ano zero” em 2017 e que este ano regressa a Carvalhais no início de Agosto. Além dos bailes, dos concertos e das oficinas de dança e de desenvolvimento pessoal, parte da programação é dedicada ao património cultural e paisagístico. Todas as manhãs, por exemplo, haverá “viagens” de tradição e de natureza, com visitas a povoações ou percursos pedestres, que podem incluir degustações, oficinas ou momentos musicais. Já no recinto do festival, serão organizados laboratórios sobre ofícios tradicionais, como “broa e moinhos de água” ou “mel e cera”.

O objectivo é que o festival funcione também como uma “montra” daquilo que a região tem para oferecer, surgindo como uma “base para se desenvolverem actividades ao longo do ano” que estimulem não só o turismo como o envolvimento da comunidade local, com retorno económico para as empresas que operam na região. “O [festival] Andanças fazia muita coisa durante aquela semana, mas depois ia [embora] e não havia mais nada o resto do ano”, compara José Carlos Almeida, presidente da Junta de Freguesia de Carvalhais e de Candal e presidente da Associação Turística e Agrícola da Serra da Arada (ATASA), que organiza o Tradidanças.

O novo festival nasce sobretudo para recuperar a herança deixada pelo Andanças, que se realizou aqui durante 15 anos, primeiro no parque da Fraquinha, em plena serra da Arada, depois no sopé da montanha, junto à povoação de Carvalhais. Após um ano de semi-interregno, o festival organizado pela PédeXumbo mudou-se para Castelo de Vide em 2013 e é lá que decorre desde então. “Tínhamos as infra-estruturas, o know-how das pessoas que estavam habituadas a organizar o festival e o saudosismo do Andanças, que saiu daqui de um dia para o outro”, enumera o autarca. “Quisemos recuperar de alguma forma o nome e pegar nessa mística toda.”

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Uma aldeia abandonada renasce para o turismo

“Acho que é a primeira vez que ainda vejo narcisos na serra nesta altura do ano”, espanta-se Paulo Pereira, ao apontar delicados tufos de flores amarelas à beira da estrada. Vamos a caminho de Arada, povoação entretanto abandonada que dá nome à serra que fecha o horizonte. O Inverno prolongado teima em atrasar a natureza e os mantos de urze e de carqueja só agora começam a florir, tingindo timidamente os cerros de roxo e de amarelo. Para lá da janela, mil-folhas de xisto crispam a subida até que, num cotovelo de estrada, a paisagem arredonda-se em blocos de granito. Torres de pedras sobrepostas destacam-se entre a vegetação rasteira. São as típicas mariolas, contam-nos, erguidas pelos pastores para servirem como pontos de referência geográfica.

Os últimos habitantes saíram de Arada há cerca de dez anos, deixando ao abandono a pequena aldeia de vistas fartas sobre os montes que se estendem até à serra da Estrela. Em 2016, um incêndio levou parte do que restava. “Quando começámos a recuperar as casas foi já com a ideia de fazer alguma coisa para turismo”, revela José Carlos Almeida. A ideia, conta o autarca, é “adquirir a aldeia toda”. Mas, para já, as ruínas que estão a ser recuperadas vão dar lugar a 12 unidades de alojamento (entre quartos e apartamentos), um fumeiro e uma cozinha com forno comunitário. Junto ao desfiladeiro, está também a nascer uma piscina. O projecto deverá ter a primeira fase concluída até à Páscoa do próximo ano. Ou a segunda fase, se contarmos como primeiro passo a queijaria e o rebanho de cabras que o pastor conduz encosta acima.

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Uma vez mais, Paulo põe-nos a olhar para plantas que de outra forma escapariam à nossa atenção. Algumas flores de centáurea lusitana aqui (subespécie endémica portuguesa da família dos cardos) e, acolá, erva das sete sangrias, com as suas pétalas arroxeadas. Um pouco mais à frente, já no Retiro da Fraguinha, descemos até à turfeira que se estende junto a um ribeiro para observar narcisos-das-turfeiras ou martelinhos (espécie endémica do Noroeste da Península Ibérica), urze-das-turfeiras, molinia, tojo menor e esfagno, o ingrediente principal na constituição de uma turfeira, um ecossistema em habitat encharcado do tempo das glaciações, que tem uma fauna e flora únicas e que está hoje em dia confinado a pequenos refúgios nas montanhas.

Foi aqui, nos relvados da Fraguinha, que se realizou a primeira edição do Andanças no concelho de São Pedro do Sul, depois de dois anos em Évora. Paulo Pereira não só fazia parte da organização como veio dele a ideia de criar em Portugal um festival dedicado às danças populares, depois de conhecer um conceito semelhante em França no início dos anos 1990. Os caminhos entretanto afastaram-se mas Paulo regressa agora com o Tradidanças, não só no apoio à organização do festival como enquanto músico, com duas bandas que marcam presença no cartaz, Bule-Bule e Malva.

Cantar para não esquecer

Depois do almoço, para desmoer os pratos de cabrito e de vitela, descemos a encosta por um percurso pedestre até Póvoa das Leiras. O caminho inicia-se na Fraguinha, onde nos abeiramos de uma pequena barragem onde se “pesca à mosca”, para depois acompanharmos o ziguezague de uma levada de granito, que guia a água das nascentes até aos terrenos agrícolas. Lá em baixo, no vale, o ribeiro do Paivô raramente desaparece por completo do cenário, formando pequenas cascatas e lagoas ao longo do caminho. A povoação do Candal já se avista do outro lado, com as suas casas cercadas pelo verde vivo das escadarias de leiras. Um cenário semelhante à Póvoa, neste lado do vale, confirmamos ao chegar.

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No Candal, há broas redondas a sair do forno e música à nossa espera. Luísa, Ana, Custódia, Marcolina e Emília trazem um longo reportório de modas da terra. Entoam testemunhos das vivências da aldeia, dos amores e desamores, das agruras do campo e do trabalho nas minas, da devoção católica. “Quando era pequenina era cantar, cantar, cantar”, recorda Luísa Campos, a mais velha das cantadeiras. Cantavam no minério, nas ceifas, nas desfolhadas. “Era uma alegria.” Os dois filhos emigraram há muito para França, assim como grande parte da população de Candal. Custódia também por lá andou muitos anos mas regressou à terra natal entretanto.

Aos 87 anos, Luísa ainda trabalha no campo e desfia mezinhas e rezas para todos os problemas com a sabedoria de quem teve de fazer farmácia e medicina com aquilo que tinha em redor. Além do coro na missa, as cinco cantadeiras dão voz à tradição popular sempre que surge uma oportunidade. Queixam-se da falta de mais eventos, no Candal e pelas povoações fora, onde gostavam de ir partilhar a herança de um tempo que já não volta. Em Agosto, pelo menos uma das viagens do Tradidanças deverá passar pelo ritmo das cantadeiras. Porque o património imaterial que carregam não tem de desaparecer com o passado.

A Fugas viajou a convite da ATASA – Associação Turística e Agrícola da Serra da Arada