Da nau encalhada à Descoberta discreta, um museu aos tropeções
Um museu para os Descobrimentos não é ideia nova. Já se quis uma nau à beira-rio, já se quis um pólo interactivo que contasse a História a partir da língua. As Descobertas incendiaram o debate, mas agora é de Descoberta que se fala. Faz diferença? E sobretudo: será que é desta?
Dia 22 de Maio de 2015. Um dia depois de ser finalmente inaugurado o novo Museu Nacional dos Coches, em Belém, Fernando Medina chamava os jornalistas aos Paços do Concelho para testemunharem a assinatura de um “protocolo de formalização de interesse” na construção de um núcleo museológico dedicado aos Descobrimentos. Com o nome provisório de Pólo Descobrir, o projecto tinha a particularidade de incluir a instalação de uma nau, com cerca de 40 metros de comprimento, na Ribeira das Naus.
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Dia 22 de Maio de 2015. Um dia depois de ser finalmente inaugurado o novo Museu Nacional dos Coches, em Belém, Fernando Medina chamava os jornalistas aos Paços do Concelho para testemunharem a assinatura de um “protocolo de formalização de interesse” na construção de um núcleo museológico dedicado aos Descobrimentos. Com o nome provisório de Pólo Descobrir, o projecto tinha a particularidade de incluir a instalação de uma nau, com cerca de 40 metros de comprimento, na Ribeira das Naus.
Tal equipamento era “algo que há muito faz[ia] falta no país e na cidade”, dizia então o presidente da Câmara de Lisboa. “No nosso país não temos muitas histórias para contar ao mundo, mas temos uma história única para contar”, afirmava Medina, explicando que a réplica da nau serviria para os visitantes verem como se construíam estes navios e como é que os navegadores preparavam as viagens. Ao lado, parcialmente enterrado, ficaria “um espaço museológico” concebido com base “nos mais rigorosos e actualizados conhecimentos científicos”, garantia o autarca, sustentando-se nos três parceiros que co-assinavam o protocolo: a Marinha, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e a Associação de Turismo de Lisboa.
Fernando Medina assegurava também que o novo espaço “não quer[ia] ser um museu dos Descobrimentos, hegemónico”, antes “um elemento” para “contar bem essa história”. Na cerimónia, o chefe do Estado-Maior da Armada defendia, por sua vez, que o pólo viria “dar um novo ímpeto à difusão da História portuguesa, em particular da marítima”.
Com abertura prevista para o Verão de 2016, o ousado projecto encalhou ainda antes de sair da doca. Na Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), as críticas foram duras e unânimes. A tutela considerou que o projecto tinha “uma intrusividade excessiva” na Doca Seca da Ribeira das Naus e que havia “um enorme risco de segurança pública” no local por causa das “previsões de subida previsível do nível do mar”. Além disso, o Conselho Nacional de Cultura, órgão consultivo da DGPC, viu na proposta da nau a vontade de fazer uma “‘recriação’ de natureza mais hedonista do que rigorosamente histórica e estética”.
Perante este cenário, a autarquia disse que estava “a trabalhar com os organismos do Ministério da Cultura com vista à definição de um programa que, cumprindo os diversos requisitos, [pudesse] disponibilizar à cidade um equipamento cultural da maior importância para a compreensão e difusão das Descobertas portuguesas”.
De então para cá, nada mais se ouviu sobre esse projecto ou outro semelhante. Acabou por ter o mesmo destino de iniciativas anteriores, como o Museu Mar da Língua Portuguesa – Centro Interpretativo das Descobertas, que também fracassou. Anunciado em 2006 pelo Governo de Sócrates (e não pela Câmara), este museu deveria ter aberto dois anos depois no edifício onde está instalado o Museu de Arte Popular, em Belém.
Vagamente inspirado no Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, no Brasil – em reconstrução, depois de um incêndio em 2015 que o destruiu por completo –, o projecto português teria apenas espólio virtual e, por isso, uma forte componente interactiva. A então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, definiu este museu como “prioritário”, mas a crise económica acabaria por ditar-lhe o fim. Nele se previa a existência de núcleos sobre as navegações portuguesas, personagens históricas relevantes, construção naval e a importância da língua portuguesa no mundo.
A discreta Descoberta
Dia 30 de Agosto de 2017. Numa pequena sala do edifício Imaviz, Fernando Medina apresentava o seu programa eleitoral às autárquicas de Outubro. No documento distribuído aos presentes, que enumerava as 25 medidas consideradas mais importantes para o mandato 2017-2021, eram três as destacadas na área da Cultura. Entre elas, “criar o Museu das Descobertas”, assim descrito: “Estrutura polinucleada na cidade que inclua alguns espaços/museus já existentes e outros a criar de novo, e que promova a reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza económica, científica, cultural, nos seus aspectos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura.”
Estas quatro linhas de descrição mantêm-se inalteradas no programa de governação da cidade, mas dá-se uma mudança – o nome passa a ser Museu da Descoberta. Entre a síntese e o programa propriamente dito, cai o “s”. Uma alteração tão discreta que terá passado despercebida aos investigadores e artistas que, em cartas abertas e textos de opinião, têm criticado publicamente a designação “Descobertas”.
Cai o “s” e vai-se a controvérsia? Ou será uma maneira de associar a designação a uma certa linha de investigação? Por exemplo, no seu Dicionário da Expansão Portuguesa, o historiador Francisco Contente Domingues também opta pelo singular, embora escolha “descobrimento”.
Fernando Medina, para já, não quer dizer nada sobre o assunto. Ao PÚBLICO, o autarca garantiu que falará do projecto “quando for oportuno” e remeteu para o programa de governação, que diz ser “particularmente detalhado” neste ponto.
Já o primeiro-ministro, António Costa, explicou o que entende da proposta da câmara. Em entrevista ao Ípsilon, fez questão de sublinhar que “o que consta do programa da Câmara Municipal de Lisboa não é nenhum Museu das Descobertas, é o Museu da Descoberta”. E acrescentou: “A descoberta contém tudo. Quer aquilo que nós descobrimos quer aquilo que os outros descobriram em nós. Mas não fazia sentido para um país que teve sempre uma visão universalista da sua própria História ter uma leitura passadista, anacrónica, como se fosse uma Exposição do Mundo Português no século XXI.”