“O lugar do PS não é capitanear frentismos de esquerda”
Sérgio Sousa Pinto é lapidar na crítica interna: “A ala esquerda do PS tanto bate palmas a um acordo com a esquerda como a acordos com a direita”. E diz que bastou Rui Rio para "a coreografia do frentismo rachar por todo o lado".
O Governo funcionou, mas apenas porque, “em tudo o que é essencial, o PCP e até o BE não são tidos em consideração”. Em 2019 não tem de ser assim, diz o deputado socialista, em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença (para ouvir esta quinta-feira às 12h).
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O Governo funcionou, mas apenas porque, “em tudo o que é essencial, o PCP e até o BE não são tidos em consideração”. Em 2019 não tem de ser assim, diz o deputado socialista, em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença (para ouvir esta quinta-feira às 12h).
Discordou logo no início desta solução política, de uma maioria parlamentar de esquerda. Mudou de opinião?
A questão está esgotada. Porque a verdade é que há três anos que temos um Governo que funciona e não podemos estar aprisionados nesta discussão. Agora, se a pergunta é se as razões que considerei pertinentes e que desaconselhavam esta solução continuam pertinentes, claro que se mantêm.
Na moção de estratégia, António Costa não diz uma palavra sobre a continuidade desta aliança à esquerda após as legislativas. Devia?
Não. Acho que não devia. Ao contrário do que certos camaradas meus têm sustentado, não vejo que haja razão para que no futuro o PS esteja condenado a ter uma política de alianças que privilegia os partidos à sua esquerda. Nem vejo razão para o PS considerar que o seu papel é organizar um frentismo de esquerda, uma cruzada contra a direita, para salvar o país das garras da direita. Esta nunca foi a mundividência do PS, não foi a mundividência de Mário Soares, que precisou aliás de liderar a direita e o centro-esquerda contra a ameaça à liberdade que vinha dos sectores à esquerda do PS. Nunca ouvi o dr. Mário Soares lamentar-se que a modernização e a prosperidade de Portugal estavam dependentes de um acordo com o PCP. Portanto, não vejo nenhuma razão para que o PS agora ceda nessa sua flexibilidade fundamental, que o coloca no centro da vida política, para se converter num partido organizador de frentes de esquerda. Não há nenhuma razão que recomende frentes de esquerda, até porque temos de lidar com realidades concretas...
Quais são as de hoje?
Os problemas nacionais, que temos de vencer, debelar, resolver. E esses são diferentes uns dos outros, são completos, difíceis e não têm nada a ver com cruzadas de esquerda contra direita, nem de direita contra a esquerda - isso é uma simplificação que responde uma certa infantilização do eleitorado. Não devemos subestimar o gosto que as pessoas às vezes têm de ser enganadas. As pessoas gostam de ser enganadas para confirmar os seus preconceitos. Se uma pessoa sente que o clube é a esquerda, está desejosa que a esquerda tenha sempre razão. Bem, isso não é a minha mundividência.
Acha que esta solução de esquerda pode repetir-se? Ou que o PS pode ganhar maioria absoluta?
É difícil ao PS chegar a uma maioria absoluta. Só uma vez a teve - e sempre teve condições para governar porque sempre reconheceu o princípio de que o partido que tem mais votos é o que tem direito a governar.
Este Governo nasceu de uma circunstância muito especial. O PS não venceu as legislativas, só chegaria ao Governo se conseguisse uma aliança com PCP e BE. Estes, por sua vez, só dando esse apoio tiravam a direita do poder. Em 2019, uma circunstância destas será repetível?
Não estou certo que os partidos de esquerda tivessem como prioridade afastar a direita do poder. Havia a preocupação de demonstrar que as pessoas, votando no BE, por exemplo, não condenavam a direita a governar eternamente o país. Agora não vale a pena, porque já passou. Até porque o Governo já demonstrou que consegue governar. Em tudo o que é essencial o PCP e até o BE não são tidos em consideração - da política de alianças de Portugal à política europeia, à prioridade absoluta ao equilíbrio orçamental. Isto vai intrigar os historiadores da posteridade: como é que nós atingimos resultados históricos em termos de consolidação orçamental com um Governo que se apresentou ao país como uma espécie de frente popular? Mas o que é certo é que em tudo o que é essencial ninguém pode acusar este Governo de ter cedido ou transacionado nada de fundamental com os seus aliados políticos.
Então faço a pergunta ao contrário: em 2019, PCP e BE estarão dispostos a voltar a uma aliança deste tipo?
É uma situação muito complexa, porque o eleitorado do PCP e do BE... Sabe, antigamente nós sabíamos com o que é que contávamos. As regras eram conhecidas. Assim como há regras de boa educação que não estão no Código Civil, havia um fair-play que não estava na Constituição: àqueles que ganhavam as eleições os outros deixavam governar. Os eleitores sabiam que, se estavam a votar no PCP, não estavam a votar no PS. E sabiam que, se estivessem a votar no BE, não estavam a votar no PS. Agora os eleitores estão confrontados com uma incógnita. Porque a seguir às eleições há uma segunda volta parlamentar. Sabe-se lá o que é que vai acontecer. As pessoas votam, na noite eleitoral os resultados são estes e depois há um segundo round parlamentar e aqui é que se vai decidir tudo. Isto é novo, nunca testámos.
Até ao final da legislatura prevê que tudo seja pacífico?
Existiram duas circunstâncias atípicas nos últimos anos. Uma delas foi uma governação de direita numa altura difícil que, do meu ponto de vista, foi de uma crueldade para com sectores da sociedade portuguesa muito grande - precários do sector privado, funcionários públicos, pensionistas - no limite do que a Constituição permitia. Isto criou um traumatismo no país, criou um ambiente psicológico e político muito especial. E houve uma necessidade de descompressão, porque havia também uma angústia em relação ao futuro. Isto criou condições irredutíveis para a criação de uma espécie de frentismo de esquerda, coisa que o PS nunca desejou na história. Mas as circunstâncias também eram novas e diferentes. Só que essas circunstâncias também não são repetíveis.
Basta ver: o dr. Rui Rio chegou e decidiu distanciar-se o mais possível deste passado do PSD, daquela brutalidade toda. O dr. Rui Rio chegou e disse: "Nós somos um partido social-democrata. E vamos sentar-nos com o Governo". E aperta a mão ao dr. António Costa, ladeado de figuras da chamada ala esquerda do PS, que tanto batem palmas a um acordo com a esquerda, como batem palmas a acordos com a direita. Isso bastou para lançar o caos nos apoiantes de esquerda: como é que o PCP explica ao seu eleitorado, como é que o BE, que está sempre naquela angústia de combater esta sinistra tentação do PS de se associar aos grandes interesses que comandam os destinos nacionais pelo menos desde 1141... e agora de repente aparece o dr. António Costa, já sorri e aperta a mão ao dr. Rui Rio? A coreografia do frentismo começou a rachar por todo o lado. Por isso, as circunstâncias que vamos viver são inteiramente novas e em larga medida imprevisíveis.
... e o congresso do PS mais interessante. Pedro Nuno Santos fez uma moção sectorial a defender que o PS deve defender uma intervenção mais forte do Estado. Acha que é um regresso ao passado, um passo em direcção ao futuro (ou um posicionamento para uma liderança futura)?
É seguramente um posicionamento, porque os congressos servem para isso mesmo: para as pessoas se posicionarem, para disputarem o poder quando é caso disso, ou para marcarem terreno e abanar dizendo: "Não se esqueçam de mim, estou aqui na cadeia de montagem". Isso é uma coisa que faz parte da vida e eu acho muito bem. Só no nosso país é que temos esta cultura: como fica mal uma pessoa aspirar ao exercício do poder...
Tem de se disfarçar.
Tem de ser disfarçado, tem de ser tudo embrulhado em ideologia: "Eu tenho aqui um pensamento, eu estou disposto a enfrentar os meus antagonistas. Mas não o faço porque desejo o poder, faço-o porque tenho aqui as minhas ideias. Eu sou um gladiador do pensamento!" Agora, sobre o Estado, não sei. O que é isso de Estado forte, Estado fraco? Não sei exactamente o que é. Espero que não seja uma coisa de socialismo de miséria. Uma das coisas que distingue o PS dos partidos à sua esquerda é abraçar sem reservas o mercado - e entender que o mercado é essencial à criação de riqueza, a uma sociedade próspera e livre. Também sabemos que o mercado tem tendência a destruir-se a si próprio e é preciso protegê-lo de si próprio, porque senão acaba com níveis de desigualdade insustentáveis. Mas essa é a tradição do PS, um partido que não está na vida pública para arrasar o mercado. Porque convém dizer aos portugueses uma coisa que não se tem dito nos últimos anos: não há nada fora do modelo social-democrata liberal. Não há nada fora do socialismo democrático e das sociedades de tipo ocidental. Só há um dilema: ou trair, como fez o Syriza e se converteu num partido do socialismo democrático, ou "venezuelizar" o país e a economia. Não há mais nada, tudo o resto são aldrabices, são fantasias, são ilusões.
Ainda há centristas no PS ou só há uma ala esquerda?
Antigamente esta coisa da esquerda/direita, dentro dos partidos... eu não sou dos que dizem que as ideologias acabaram, não acabaram. Têm interesse e estão vivas. Mas sempre pensei que este exercício era um bocadinho jornalístico. Ou seja, a necessidade de encontrar uma narrativa que ajudasse a organizar o partido de forma inteligível, para que as pessoas em casa percebessem: "Olha, lá está aquele, aquele é o campeão da direita; lá está aquele, é o campeão da esquerda; lá está aquele mais gordinho, é mais ao centro"...
E não acha que também está a ser usado por personalidades dentro do PS, também para...
É evidente, era o que eu ia dizer. Sim. Porque quando uma pessoa se auto-proclama de ala esquerda, está a atravessar um risco no chão e a deixar os outros todos na ala direita. Já várias vezes me tenho interrogado sobre qual será a ala direita do PS. Já pus a hipótese de ser eu - é uma hipótese um bocado absurda tendo em conta a minha história política, mas é possível porque o PS agora desenvolveu uma coisa para fora de si próprio, desenvolveu uma bossa, uma anormalidade em direcção à esquerda, que o torna diferente em relação aquilo que era a sua configuração originária. E eu agora estou à direita da bossa, estou à direita da novidade, estou à direita do abcesso ideológico que antigamente não estava cá... se calhar estou, não sei. Também já pus a hipótese de ser o dr. António Costa a direita do partido. Isso é tudo uma grande questão lá dentro do Governo que eu não estou em condições de poder...
... esclarecer?
Esclarecer. Mas realmente não sei de onde vem esta coisa da esquerda e da direita do partido. Não sei, é uma arrumação que não me interessa nada, do meu ponto de vista é muito simples: o PS tem de ser uma força que contribua para a resolução dos problemas nacionais e para a construção de uma sociedade melhor, onde os nossos filhos tenham oportunidades que nós não tivemos, de ser felizes e fazer coisas úteis. E é essa lenta progressão em relação a uma sociedade mais decente e melhor que temos de servir. Não é considerar que somos actores históricos, que a história está do nosso lado e que temos de acelerá-la, esmagando aqueles que são movidos por uma ética inferior, assente na desigualdade e opressão. Isto é uma simplificação para crianças! A vida não é isto. Nós temos é que procurar melhorar as condições objectivas da vida de todos. Pelo menos trabalhar para a igualdade de oportunidades e para uma certa igualdade de resultados, porque há desigualdades intoleráveis. Será isto ideologia? Talvez.
Se em 2019 for preciso construir isso com o apoio do PSD, é possível?
Eu não defendo nenhum acordo do PS com o PSD. O que entendo é que o lugar do PS não é capitanear frentismos de esquerda, não é esse. O lugar do PS é perceber que há certas reformas de que o país precisa que só podem ser feitas com a esquerda; e que há reformas de que o país precisa que só podem ser feitas com a direita. O país tem grandes dificuldades em vencer resistências, no sentido de se reformar e modernizar. E essas tarefas têm de ser feitas nuns casos com a direita, noutros com a esquerda. Vou dar-lhe um exemplo: quem é que manda na Educação? É a direita? Não é, são os sindicatos! Acha que é possível reformar a Educação com o apoio da esquerda? Não é! São representantes parlamentares do poder sindical. Imagine a Segurança Social, sistema de pensões: a direita tem um entusiasmo particular pelo sistema de capitalização, o PS é contra, a esquerda é contra. É possível reformar o sistema de Segurança Social com a direita? É mais fácil fazê-lo com a esquerda. O que defendo é isto, não defendo alianças preferenciais, nem defendo este debate de polícias sinaleiros, mais pela direita, mais pela esquerda... isto são jogos de palavras que não têm qualquer densidade.