Viagem sem regresso
Um filme, uma experiência, um mergulho profundo numa escuridão americana através da mente de um Joaquin Phoenix possuído pela câmara de Lynne Ramsay.
Comecemos pelo palavrão que designa a ideia de “obra de arte total”, Gesamtkunstwerk, inventado pelos românticos alemães do século XIX e refinado pela Bauhaus: uma proposta artística que cruza disciplinas para criar um todo cujas partes não são indissociáveis. É exactamente isso que a escocesa Lynne Ramsay faz em Nunca Estiveste Aqui, com uma determinação que quase se confunde com arrogância — mas que é apenas sinal de uma cineasta teimosa, daquelas que os homens que ainda mandam em Hollywood gostam de definir como “difícil” porque vê mais longe do que eles todos juntos.
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Comecemos pelo palavrão que designa a ideia de “obra de arte total”, Gesamtkunstwerk, inventado pelos românticos alemães do século XIX e refinado pela Bauhaus: uma proposta artística que cruza disciplinas para criar um todo cujas partes não são indissociáveis. É exactamente isso que a escocesa Lynne Ramsay faz em Nunca Estiveste Aqui, com uma determinação que quase se confunde com arrogância — mas que é apenas sinal de uma cineasta teimosa, daquelas que os homens que ainda mandam em Hollywood gostam de definir como “difícil” porque vê mais longe do que eles todos juntos.
Desde já: Nunca Estiveste Aqui é mais uma prova de que o cinema inglês já deixou de ser aquela coisa que Truffaut, meio em boutade, dizia não existir realmente. A absoluta irredutibilidade do estilo de Ramsay é tal que os seus filmes — este é o quarto, depois de Ratcatcher (1999), A Viagem de Morvern Callar (2001) e Temos de Falar sobre Kevin (2010) — não são narrativas, são experiências. Nunca Estiveste Aqui é um mergulho quase sem regresso numa escuridão (não só) americana, ao mesmo nível do American Honey de Andrea Arnold (2016); um momento de onirismo avassalador como o Debaixo da Pele de Jonathan Glazer (2013); uma releitura de género equiparável à que Arnold fez com o seu O Monte dos Vendavais (2010) ou William Oldroyd com Lady Macbeth (2016). É um filme esteta, sim, formalista, mas cujo formalismo não é gratuito nem ostensivo (como num Anders Winding Refn, por exemplo). Apenas um modo de imergir o espectador no seu interior.
Há um homem, Joe, ex-militar, perseguido pelo seu passado de “mão de obra contratada” quando é preciso recuperar adolescentes desaparecidas e castigar os responsáveis, um ser perturbado que ainda vive com a mãe. Há um trabalho que corre mal, quando o “salvamento” de uma miúda colide com ambições políticas, ameaçando destruir interesses existentes. E tudo nos é mostrado pelos olhos de Joe, o assassino existencialista e suicida cuja mente percorremos durante 90 minutos, com um Joaquin Phoenix literalmente possuído pela câmara de Ramsay a projectar fisicamente, com um mínimo de palavras, o tormento que lhe sentimos na alma. A fachada é a de um neo-noir violento, mas Nunca Estiveste Aqui nunca se deixa levar pelo prazer puro, simples, da explosão libertadora; coloca sempre questões, põe sempre o espectador em xeque, questiona a própria evidência que vemos no écrã. É um filme em permanente fuga, um Gesamtkunstwerk total, avassalador, que exige o grande ecrã e submerge o espectador no seu mal-estar. Por nós, não temos dúvidas: deixem Lynne Ramsay filmar o que ela bem entender, como ela bem o entender. Nunca Estiveste Aqui não é um filme só para o momento, é um filme para ficar para as calendas.