E se uma obra do século XIV tivesse a mão de Siza Vieira? Vai acontecer em Leça do Balio
Siza Vieira e Sidónio Pardal, pela primeira vez a trabalharem em conjunto, são os responsáveis pelos trabalhos de requalificação da Quinta do Mosteiro de Leça do Balio que, na rota dos peregrinos dos Caminhos de Santiago, estará pela primeira vez em séculos aberto à população. Junto ao edifício do século XIV nascerá um novo, desenhado pelo Pritzker, que deverá estar pronto em 2020.
Quem disse que as viagens no tempo não são possíveis? Sem recurso a máquina do tempo, aparelho que ainda só conhecemos a partir de obras de ficção, e sem interferência na linha temporal que traça o caminho até ao presente, em Leça do Balio vai haver um encontro entre duas épocas separadas por séculos.
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Quem disse que as viagens no tempo não são possíveis? Sem recurso a máquina do tempo, aparelho que ainda só conhecemos a partir de obras de ficção, e sem interferência na linha temporal que traça o caminho até ao presente, em Leça do Balio vai haver um encontro entre duas épocas separadas por séculos.
Lado a lado, um edifício granítico do século XIV, de arquitectura gótica e românica, e outro contemporâneo, de betão e desenhado com recurso a linhas limpas, vão coabitar no mesmo espaço. Tudo isto, no cenário da Quinta do Mosteiro de Leça do Balio, comprado em 2016 pelo Centro Empresarial Lionesa, nesta localidade de Matosinhos, que vai investir pelo menos 10 milhões de euros nas obras de requalificação deste espaço que será intervencionado em conjunto pelos arquitectos Siza Vieira e Sidónio Pardal.
O primeiro passo para a obra que deverá estar concluída no primeiro trimestre de 2020 foi dado nesta quarta-feira, em Ano Europeu do Património Cultural, com a apresentação da maqueta que serve de exemplo para o edifício que o galardoado com o prémio Pritzker desenhou para ser edificado no jardim da quinta que será intervencionada pelo arquitecto paisagista responsável por obras como o Parque da Cidade, no Porto. Ainda não há data definida para o arranque.
No mesmo dia, abriram-se as portas do mosteiro, cujo edifício primitivo remonta ao século XI, para desvendar a exposição Monasterium Km 234, que conta a história do monumento e do seu papel nos Caminhos de Santiago, onde se insere, precisamente à distância de 234 quilómetros do destino. A exposição que inaugura no sábado e se estende até ao final do ano, assinala ainda a primeira vez que o mosteiro abre ao público em geral. Durante séculos esteve vedado à população.
Quem o diz é o historiador Joel Cleto, curador do projecto, que numa visita guiada à exposição conta que este era um espaço conventual “fechado”, apenas acessível aos Cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém dos Hospitalários, a quem Dona Teresa cedeu o espaço no século XII. Além dos frades que ali oravam e treinavam – era uma ordem religiosa militar -, servia também de ponto de paragem de peregrinos. “Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, dá-se a nacionalização de todo este espaço que depois passou para a esfera privada e até hoje se manteve fechado à comunidade. Por isso, esta é a primeira oportunidade desde há muitos séculos para as pessoas de uma forma livre poderem usufruir do mosteiro”, refere.
O historiador sublinha que não se deve confundir esta área com a da igreja, nas costas do mosteiro, que, essa sim, sempre esteve aberta ao público.
No século XII, em pleno processo de reconquista cristã, explica que seria mais lógico e mais habitual fixar as ordens religiosas e militares em zonas fronteiriças. Fixava-se a fronteira, na altura, na linha do Mondego. Fixam-se os Hospitalários em Leça do Balio, numa zona “mais do que consolidada e já sob domínio cristão”. Explica que há um motivo forte para que assim tivesse acontecido: “A escassas centenas de metros do mosteiro passa a velha estrada de Olissipo para Bracara Augusta, a verdadeira autoestrada do império romano aqui no noroeste, mas que nesse século continuava a ser a grande via de ligação para o norte e para os Caminhos de Santiago. Esta ligação até aos Caminhos de Santiago, alicerça desde o início a sua importância”.
Porto como ponto de partida para Santiago
É essa importância que o responsável pela Lionesa, Pedro Pinto, presente na apresentação, considera matéria para ser aproveitada. Continuando a ser um ponto de passagem de peregrinos que seguem rumo a Santiago de Compostela – enquanto lá estivemos vimos alguns -, quer-se reforçar essa ideia para chegar mais longe. “Queremos criar uma nova centralidade turística de captação de caminheiros e peregrinos. Interessa-nos que venham ao Porto e que façam os caminhos a partir daqui”, afirma.
Integrada no plano de expansão da Lionesa, este investimento a cargo, na totalidade, da empresa, ainda não tem valor final, mas é seguro que não serão gastos menos de 10 milhões de euros. Explica-nos que há variantes que podem surgir durante a sua execução e novas ideias que se podem juntar às originais. Questionamos como recuperará a empresa o investimento e de que forma o pensa rentabilizar. Por agora prefere não adiantar mais do que o que foi revelado. “Por agora interessa-nos focar nesta primeira fase”, afirma.
O espaço intervencionado conta com uma área coberta total de 1200 metros quadrados. A área total a descoberto a ser intervencionada pelo arquitecto paisagista ronda os 3,8 hectares. É dentro dessa área que vai nascer o edifício projectado por Siza Vieira: uma construção em betão branco que servirá de espaço multifuncional para peregrinos, com alguns motivos encrostados alusivos aos caminhos de Santiago.
O primeiro trabalho conjunto de dois amigos de longa data
A representar a dupla de arquitectos esteve Sidónio Pardal, que pela primeira vez trabalha em conjunto com um “amigo de longa data”. O projecto, apresentado no local onde no século XIV casaram D. Fernando e Dona Leonor Telles, leva-nos a questionar sobre a forma como está a desenrolar-se este “casamento” entre os dois arquitectos. “Somos amigos há muitas décadas e esta é a primeira vez que estamos a trabalhar juntos. E estamos mesmo a trabalhar juntos no estirador de forma produtiva, o que torna o processo numa experiência muito singular a partir da combinação de ideias e de maneiras de ver e de criar que se conjugam”, conta.
Quanto ao encontro entre o passado e o presente o arquitecto tem uma visão progressista: “Há o preconceito de que tudo o que é do passado é bom e que a arte acabou. Há a ideia de que o que os artistas contemporâneos fazem é para estragar, mas essa é uma visão maniqueísta. É certo que o nosso país nas últimas décadas passou por uma experiência urbanística que não é feliz, mas até por isso é urgente dar espaço ao desenho urbano para demostrar que temos que reconstruir grande parte do nosso mundo para criarmos espaços onde possamos viver com conforto, bem-estar e que acrescentem valor ao património”.