Os museus e o mundo virtual: amigos ou inimigos?
Será a dita “disrupção” verdadeiramente revolucionária? E sendo, será uma revolução positiva ou negativa?
Propõe-nos o Conselho Internacional dos Museus (ICOM) que este ano reflictamos sobre “Museus Interconectados”. O desafio que é o de considerar as redes globais de conexões a distância, servidas por suportes digitais numéricos, e de como os museus nelas se podem ou devem integrar. Aceito, pois, o repto, como o fiz recentemente em seminário na Faculdade de Letras do Porto e texto na plataforma Património.pt.
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Propõe-nos o Conselho Internacional dos Museus (ICOM) que este ano reflictamos sobre “Museus Interconectados”. O desafio que é o de considerar as redes globais de conexões a distância, servidas por suportes digitais numéricos, e de como os museus nelas se podem ou devem integrar. Aceito, pois, o repto, como o fiz recentemente em seminário na Faculdade de Letras do Porto e texto na plataforma Património.pt.
Por provocatória que possa parecer, a questão impõe-se: serão os museus e o mundo virtual amigos ou inimigos? Inimigos, certamente, para alguns, os mais “conservadores” (no pensamento, que não necessariamente na profissão), porque é essa a condição de ser museu: opor a fortaleza inexpugnável do real, face à devassa espectral do virtual. Infelizmente fazem-no, na maior parte dos casos (mesmo sem o saberem), mais por razões de defesa dos “modelos de negócio” em que cresceram (e envelheceram) do que por razões de real cometimento com os princípios da emancipação cidadã. Mas também amigos, porque para outros, os mais “modernaços”, importa caminhar em força e depressa para o que chamam “museu virtual” – com a vantagem adicional de tal deriva gerar mercado, terreno onde normalmente se movimenta quem discorre sobre museus, sem verdadeiramente nunca neles ter trabalhado.
E depois há aqueles que ficam a meio da ponte. Entre estes me situo.
A primeira questão é a de saber se podem existir “museus virtuais”, em sentido literal, quer dizer, sem possuírem colecções materiais. Mesmo correndo o risco de parecer conservador em excesso, entendo que tal não é possível, porque se mantem válido aquilo a que Walter Benjamim chamou de “aura” do objecto, inimitável mesmo “na era de reprodutibilidade técnica” da obra de arte. Tomemos o exemplo da fotografia: reduzida a ficheiros numéricos sem suporte material, porque hão-de os seus arquivos ser chamados de museus e não simplesmente... arquivos, tal como as colecções de livros são chamadas de bibliotecas?
Quanto às novas tecnologias em museus propriamente ditos, e dentro delas à digitalização, começo por considerar que são muito bem-vindas. E tenho por quixotesco pretender opor-se-lhes. Todas, ou quase todas, são úteis aos museus: a Realidade Virtual, Aumentada ou Imersiva; o registo e impressão 3D e muito mais. Vale a pena percorrer os volumes anuais de observatório de tendências, editados pela Aliança Americana de Museus, para neles encontrar as mais sedutoras avenidas digitais/virtuais de futuro: (2012) A Realidade Aumentada; (2013) Impressão 3D: réplicas impressas sob pedido; Quando as coisas falam connosco; (2014) Sinestesia: experiências multissensoriais, para um mundo multissensorial; Robôs!, tanto em serviços internos (restauração, limpeza doméstica, controlo de pragas, inventário, etc.) como em serviços externos (visitas guiadas para levar as pessoas virtualmente aos bastidores, avatares de visita para grupos escolares a distância, animação de modelos, etc.); (2015) Resposta à medida de cada um: Motores de Aconselhamento; (2016) A realidade aumentada (AR) e a realidade virtual (VR) no diálogo com visitantes e utilizadores em geral; (2017) A emergência da máquina inteligente: lidar com a incerteza, aprender com a experiência, fazer previsões, interpretar a linguagem de forma complexa e contextual.
Pode até antecipar-se que o mais importante ainda está para vir: as tecnologias digitais passarão a ser usadas não apenas no pilar da “comunicação” do museu, mas em todas as suas funções sociais. O registo 3D tornará mais económico o restauro de peças e permitirá melhores e mais seguros índices de desempenho no inventário; o acesso virtual a colecções revolucionará a relação entre reservas e áreas expositivas; estas últimas, e bem assim os seus catálogos (mesmo impressos), poderão passar a ser compostas “à medida do cliente”, seja ele presencial ou remoto.
No fundo, no fundo, poderemos talvez estar perante a emergência de um “novo modelo de negócio” para os museus – e por isso se acentua o carácter disruptivo destas tecnologias.
Só que, chegados aqui, importa parar para pensar.
Pensar primeiro a um nível organizacional: novos serviços, porventura e como prefiro dizer, novas funções sociais? Por que não? Será isso “disruptivo”? Talvez, na medida em que pode tornar obsoletos segmentos de mercado anteriores (veja-se o exemplo da fotografia digital em relação à analógica) e pode até potenciar, pelo menos provisoriamente, situações em que “todos perdem” e só ganham os consumidores, tornados piratas (veja-se o caso do mercado da música). Não vejo nenhum mal nestas evoluções e os museus farão bem em cavalgá-las, para melhor se posicionarem em novos arranjos de mercado.
Mas será a dita “disrupção” verdadeiramente revolucionária? E sendo, será uma revolução positiva, ou seja, em direcção da emancipação do ser humano, ou negativa, quer dizer, na direcção da sua alienação, nos termos em que marketeers e opinion makers, a começar por Walter Lippmann, sempre nos ensinaram, reclamando contra a falsidade das ideologias, máxime da democracia. As ideologias, dizia ele, “assumem que os votantes são intrinsecamente competentes para dirigir o curso dos seus assuntos ou que progridem em direcção a um ideal”, algo ilusório (“eu penso que a democracia é um ideal falso”) porque as necessidades pouco ou nada têm de inerente à condição humana e podem, devem mesmo, ser induzidas de fora, por elites políticas, assessoradas por fornecedores de bens e serviços.
Aqui, sim, é que bate o ponto que me separa de muitos dos arautos das novas tecnologias e do digital, porque não somente sustento a actualidade e primado da ideologia em geral, como do seu vasto espectro defendo os ideais que se pautam pela utopia da libertação da condição humana. Ora, existem já estudos que apontam no sentido da alteração profunda da mente no sentido da perda dos valores da espacialidade, pela imersão excessiva em representações virtuais do mundo. E todos sabemos, por experiência histórica vivida, como o domínio do espaço, em íntima conexão com o do tempo, constitui o fundamento básico da liberdade, conquistada em milénios de construção histórica do ser que chamamos humano.
Dito de outra forma, menos filosófica e mais operacional: defendo e combato por sentidos de vida em comum (ou seja, por políticas) que promovam a fraternidade, a entreajuda, a dignidade na repartição da riqueza (material e intelectual)... e não o encapsulamento de cada um em universos paralelos comandados à distância por provedores tecnológicos, fornecedores de programas e equipamentos, mais do que de conteúdos. Por isso e para resumir, quando se fala de digital e museus, direi: novas tecnologias, sim; novas alienações, velhas prisões, não.