A ciência portuguesa morre
O orgulho nacional alimenta-se do incrível estoicismo dos investigadores e professores portugueses, mas não resolverá nenhum dos nossos problemas.
Portugal continua hoje na cauda da ciência dos países desenvolvidos porque não tem respeitado, desde há décadas, os três princípios fundamentais que sustentam qualquer sistema científico que deseje ser digno desse nome.
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Portugal continua hoje na cauda da ciência dos países desenvolvidos porque não tem respeitado, desde há décadas, os três princípios fundamentais que sustentam qualquer sistema científico que deseje ser digno desse nome.
1. Portugal não investe significativamente em investigação e desenvolvimento (I&D). Em 2012, Portugal ocupava o posto 22 dos países da OCDE em gasto público em ensino superior, cobrindo pouco mais de um 50% dos custos da educação universitária, muito abaixo da média da OCDE e muito longe do “modelo nórdico”. A restante fatia da despesa é suportada pelas famílias dos estudantes, através das propinas, ou por entidades privadas. Duvido que a situação se tenha alterado nos últimos anos. O investimento nacional em I&D nunca superou 1,5 % do produto interior bruto (PIB), quando a União Europeia recomenda atingir pelo menos um 2%. É isto porque Portugal é um país pequeno? A Suécia (10 milhões de habitantes), Áustria (8,75 milhões), Dinamarca (5,7 milhões), Finlândia (5,5 milhões) e Noruega (5 milhões) investem entre duas e três vezes mais o que Portugal investe, desde há décadas. Será porque Portugal é um país pobre?
Só a nacionalização do BPN pode custar aos cidadãos 5400 milhões de euros, mais do dobro do Orçamento do Estado de 2017 para a ciência, tecnologia e ensino superior. Há dinheiro para o que se quer, e é claro que a ciência e a tecnologia ocupam lugares secundários nas mentes das elites políticas e económicas de Portugal.
2. Portugal não é regular nos seus concursos de financiamento. A função principal dos concursos nacionais de projectos I&D é a de injectar capital significativo e regular no sistema científico nacional, para mantê-lo saudável, bem oleado e capaz de responder eficientemente a possíveis desafios societais. É por isso que todos os países desenvolvidos fazem pelo menos um concurso por ano, com regularidade e pontualidade irrepreensíveis, independentemente do partido que se encontrar no poder.
Em Portugal não houve financiamento de projectos I&D em todos os domínios científicos em 2003, 2005, 2007, 2011, 2015 e 2016. Houve apenas dois destes concursos nos últimos cinco anos. Não exagero se disser que o sistema científico português está praticamente falido desde 2014. Ainda aceitando um aumento na percentagem de sucesso do concurso de 2017 até 36% prometido pelo ministro da Ciência Manuel Heitor (já veremos), os desafortunados que ficaram sem financiamento este ano, depois dos anos de seca prévios, vão ficar em situação ridiculamente precária ou vão simplesmente desistir, desperdiçando anos (décadas!) de investimento nacional em recursos humanos. É que Manuel Heitor já avisou que não tem intenção de abrir outro concurso em 2018.
Mesmo que os calendários dos concursos não mudem, mudam as regras, os requisitos de elegibilidade, os fundos disponíveis, a interface de candidatura ou a estrutura dos painéis de avaliação. Por vezes ainda no decurso do processo de candidatura! Não há regularidade no sistema de financiamento científico português, tudo é imprevisível e, portanto, os cientistas e as instituições só podem viver e investigar um dia de cada vez. Não nos permitem planear a longo prazo ou estabelecer objectivos ambiciosos.
3. Portugal não oferece um ambiente de trabalho científico estável ao longo do tempo. A única coisa que tem sido verdadeiramente estável é o montante do subsídio mensal das bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, que não foi actualizado desde quase duas décadas e, agora que finalmente foi feito, tem sido muito tímido. Portugal também tem sido um dos últimos países a aderir à mudança de bolsas para contratos, uma mudança necessária para regularizar a situação dos trabalhadores científicos. Não somos estudantes, mas verdadeiros profissionais que cobrimos necessidades permanentes das instituições de ensino superior e de investigação, muitas vezes em precaridade.
É vergonhoso ouvir o ministro Manuel Heitor e os reitores das universidades (CRUP) tentarem argumentar para a exclusão da ampla maioria dos professores de ensino superior e investigadores no processo de regularização do PREVPAP [Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública]. Tal exclusão é arbitrária e vai contra os princípios da própria regularização e os critérios inscritos numa lei da República, tal como têm afirmado os sindicatos Fenprof e Snesup. Os rankings de que algumas instituições portuguesas se orgulham estão construídos sobre trabalho precário de um número significativo de investigadores e professores convidados. Como resultado, dedicamos mais tempo preocupados em não perder o emprego do que a resolver os problemas científicos que nos pagam para resolver. O mesmo trauma é sofrido pelas instituições, que praticamente só podem tentar adaptar-se à arbitrariedade de cada concurso para obter fundos suficientes que lhes permitam manter as suas actividades diárias. E os fundos raramente são suficientes.
Assim, a próxima vez que lhe perguntarem por que razão Portugal está na cauda da ciência dos países desenvolvidos do mundo, não culpe as ditaduras passadas, a Inquisição, a nossa preguiça ou o nosso clima. A próxima vez que alguém usar os sucessos de um cientista português como motivo de orgulho nacional, pergunte-se se a sua nação realmente o apoiou ou, pelo contrário, colocou pregos, paus e pedras nas suas rodas. O orgulho nacional alimenta-se do incrível estoicismo dos investigadores e professores portugueses, mas não resolverá nenhum dos nossos problemas.