Tortura — a última batalha do senador McCain

Apesar de estar gravemente doente e a grande distância, o senador republicano continua a agitar as águas da política em Washington. A sua batalha contra a nomeação de Gina Haspel faz parte da guerra em defesa do seu legado.

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John McCain Reuters

O senador John McCain está a 3200 quilómetros de Washington e não é visto no Capitólio há cinco meses, mas continua a ser uma poderosa força na política nacional e uma figura polarizadora dentro do Partido Republicano.

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O senador John McCain está a 3200 quilómetros de Washington e não é visto no Capitólio há cinco meses, mas continua a ser uma poderosa força na política nacional e uma figura polarizadora dentro do Partido Republicano.

A partir da sua casa em Sedona, no estado do Arizona, onde está a receber tratamentos para uma forma agressiva e habitualmente fatal de cancro no cérebro, McCain desafiou e aplaudiu decisões da Administração Trump em matéria de segurança nacional  — com a sua voz reduzida a comunicados e ao Twitter.

Mas a sua declaração de quarta-feira contra a nomeação de Gina Haspel, escolhida pelo Presidente Donald Trump para directora da CIA, turvou inequivocamente o ambiente político. A sua denúncia provocou a reacção dos seus colegas senadores e do vice-presidente, e originou comentários intempestivos por parte de alguns republicanos alinhados com Trump, incluindo uma assessora da Casa Branca.

McCain fez renascer um intenso debate sobre a eficácia da tortura na obtenção de informações nos 16 anos desde os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 — e fala por experiência própria. Esteve detido cinco anos e meio numa prisão do Vietname do Norte, onde foi privado de sono, alimento e de medicamentos, depois de um caça que pilotava ter sido abatido sobre Hanói.
E apesar de não se esperar que McCain vá votar, a sua oposição a Haspel — baseada no papel que ela teve em interrogatórios da CIA a suspeitos de terrorismo — injectou de incerteza a confirmação da sua nomeação. 

Num momento em que republicanos e democratas lidam com a ideia de o Senado deixar de ter a presença de John McCain, este continua a receber visitas no Arizona.
O senador republicano da Carolina do Su,l Lindsey Graham, um dos melhores amigos de McCain, regressou a Washington depois de uma visita bastante prolongada ao senador e descreveu o seu estado de espírito: “Um passo em frente de cada vez.”

“Falámos do futuro”, disse Graham. “Fiquei agradavelmente surpreendido [pelo vigor de McCain]. Estou ansioso por lá voltar.”

Livro nostálgico

No Capitólio, são poucas as esperanças de que McCain, de 81 anos, retome o seu papel de estadista veterano, de diplomata elegante, de especialista militar e de consciência do Partido Republicano.

É esse, aliás, o subtexto do livro que o senador se prepara para lançar, The Restless Wave (a onda inquieta), um volume nostálgico que será posto à venda no final de Maio e em que McCain conta e defende os seus esforços para denunciar e evitar o uso da tortura, denuncia o expansionismo russo e comenta a ordem internacional. 

“Antes de partir, gostava de ver os nossos políticos regressarem aos objectivos e comportamentos que distinguem a nossa história da de outras nações”, escreve McCain. “Gostava de nos ver recuperar a noção de que somos mais iguais do que diferentes. Somos cidadãos de uma república construída sobre ideias comuns forjadas num novo mundo que substituiu as hostilidades tribais que atormentaram o velho mundo. Mesmo em períodos de convulsão política como este, partilhamos essa fantástica herança e a responsabilidade de a interiorizar.” 

No livro, McCain também aborda de forma directa Donald Trump, reconhecendo que há “vislumbres de esperança” na sua política externa, mas expressa sérias dúvidas sobre o próprio Trump.

“Não percebo bem quais são as convicções do Presidente Trump”, escreve. E acrescenta: “Uma dureza apenas aparente, ou uma dureza em versão reality show, parece ser mais importante do que qualquer um dos nossos valores.”

A doença de McCain acrescentou uma carga adicional de gravidade à nomeação de Haspel, que, como alta-funcionária da CIA durante o período da guerra contra o terrorismo após o 11 de Setembro, supervisionou “interrogatórios extremos” a suspeitos de terrorismo que alguns — incluindo John McCain — classificaram de tortura.

Durante a sua audição no Senado, na quarta-feira da semana passada, Haspel prometeu que não permitirá que a CIA realize esse tipo de interrogatórios. Mas foram várias as vezes em que recusou caracterizar os métodos de interrogatório usados como imorais, dizendo que eram legais à luz da lei.

No mesmo dia, Dick Cheney, que era vice-presidente na altura dos ataques de 11 de Setembro e é considerado o homem que “levou” aqueles métodos de interrogatório para dentro da Administração George W. Bush, disse ao canal de televisão Fox Business que os actos da CIA não são considerados tortura. E, contrariando um relatório do Senado sobre o assunto, disse que os métodos usados “funcionaram”.

“Se tivesse dedecidir outra vez“, disse Cheney, ”tomava a mesma decisão”.

Horas depois, McCain emitiu um comunicado: “Os métodos que usamos para manter a segurança da nação têm de ser correctos e justos, iguais aos valores com que queremos reger a nossa vida e que queremos promover em todo o mundo.”

“Acredito que Gina Haspel é uma patriota que ama o nosso país e que devotou a sua vida profissional ao nosso serviço e defesa”, escreveu o senador republicano. “Porém, o seu papel na supervisão da prática de tortura por cidadãos americanos é alarmante. E a sua recusa em admitir a imoralidade da tortura torna-a inapta para este trabalho.”

Um “herói genuíno”

A denúncia enfureceu alguns republicanos que consideraram que os comentários de John McCain foram motivados pela sua oposição a Trump e não pela força dos ideais de conservadorismo que McCain, que em 2008 foi o nomeado do Partido Republicano às eleições presidenciais, personifica.

O The Washington Post e outros meios de comunicação social noticiaram na quinta-feira que, durante uma reunião  interna, Kelly Sadler, do gabinete de comunicação da Casa Branca, desvalorizou as palavras do senador, dizendo: “Não importa [o que ele diz], ele até está a morrer.”

A Casa Branca não negou as notícias. “Não faço comentários sobre reuniões de pessoal”, disse a porta-voz Sarah Huckabee Sanders.

No mesmo dia, o general reformado da Força Aérea Thomas McInerney defendeu a tortura porque funciona, e deu precisamente John McCain como exemplo: “É por isso que lhe chamavam ‘John, o passarinho cantor’.”

Os testemunhos independentes sobre o cativeiro de John McCain no Vietname não incluem qualquer sugestão de que este passou informação aos captores. O que ele fez foi recusar várias vezes a libertação, que lhe foi oferecida por ser filho de um almirante da Marinha — não quis ser tratado de forma diferente da dos outros prisioneiros de guerra.

A defesa de McCain foi feita pela família e pelos seus velhos amigos em Washington.

“O legado do meu pai vai ser comentado durante centenas de anos. Estas pessoas? Não são nada. E ninguém se vai lembrar delas”, disse a filha Meghan McCain. 

Joe Biden, que foi vice-presidente de Barack Obama, emitiu um depoimento acutilante, acusando a Administração Trump de ter “batido no fundo”.

“John McCain é um herói genuíno — um homem de valores que fez sacrifícios imensuráveis por este país”, disse Biden. “Está a lutar pela vida e merece mais do que isto — merece muito mais do que isto.”

É possível, mas improvável, que a oposição de John McCain à nomeação de Gina Haspel liquide a sua hipótese de ser confirmada para o lugar. Haspel precisa de 50 votos, e dois dos 51 senadores republicanos opõem-se à sua nomeação. A maior parte dos democratas é contra a nomeação: na declaração de voto que já tornaram pública, os senadores Tim Kaine e Robert Menendez mencionaram McCain.

Ainda não se sabe como votarão muitos senadores, e um dos votos-chave pertence ao jovem republicano Jeff Flake, que também representa o estado do Arizona e recentemente esteve em Sedona. Flake já disse que as palavras de McCain vão ter muito peso na sua decisão. “Sempre partilhei a posição de McCain sobre a tortura e sempre o vi como um modelo a seguir nesta matéria.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post