O temido Sadr, anti-EUA e anti-Irão, aliou-se aos comunistas e venceu no Iraque

O líder religioso que como nenhum outro fez frente à ocupação americana de 2003 reinventou-se, uma vez mais. Tem o futuro governo iraquiano nas mãos. Sabe-se que quer fugir à influência iraniana e que defende o combate à corrupção.

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O jovem religioso que poucos conheciam quando os Estados Unidos invadiram o Iraque tornou-se rapidamente incontornável, mas esteve discreto nos últimos tempos. Analistas, sondagens, dirigentes, todos antecipavam que o vencedor das quartas legislativas desde a queda de Saddam Hussein fosse um de dois candidatos: o primeiro-ministro, Haider al-Abadi (depois da derrota que impôs ao Daesh) ou o também xiita Hadi al-Amiri. Engaram-se.

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O jovem religioso que poucos conheciam quando os Estados Unidos invadiram o Iraque tornou-se rapidamente incontornável, mas esteve discreto nos últimos tempos. Analistas, sondagens, dirigentes, todos antecipavam que o vencedor das quartas legislativas desde a queda de Saddam Hussein fosse um de dois candidatos: o primeiro-ministro, Haider al-Abadi (depois da derrota que impôs ao Daesh) ou o também xiita Hadi al-Amiri. Engaram-se.

Com mais de metade dos votos contados, a Comissão Eleitoral dava esta segunda-feira como vencedora a coligação formada por Moqtada al-Sadr. Líder religioso, profundamente nacionalista, Sadr não se apresentou nas listas, mas uniu as suas forças às do Partido Comunista na aliança Sairoon (Os Manifestantes) e fez sucesso com uma campanha anti-sectarista e anticorrupção (num momento em que os iraquianos estão finalmente mais preocupados com serviços básicos e corrupção do que com a violência).

Único xiita que sempre foi realmente independente de Teerão, Sadr é bem visto pelos árabes sunitas – nos grandes protestos de 2012/2013, os primeiros a cruzarem linhas religiosas, Sadr apoiou as manifestações contra o então primeiro-ministro, Nouri al-Maliki, quando iraquianos, na maioria sunitas, gritavam: “O povo quer a queda do regime”, a frase das revoltas árabes de 2011.

Sabia-se que tinha uns 30 anos na altura da invasão e que era filho de um respeitado Grande Ayatollah, sucessor de Maomé. Do pai herdou ainda uma rede de activismo social e serviços à disposição dos mais pobres – habitualmente, xiitas, nos tempos de Saddam. Assim que Bagdad caiu, as favelas dos arredores de quase todas as cidades, até aí conhecidas como Saddam City, passaram a ser chamadas de Sadr City. Era Sadr a saber ocupar como ninguém o vazio aberto pela dissolução do Estado.

Formou uma milícia, o Exército de Mahdi (nome do 12º imã que os xiitas acreditam que Deus terá “ocultado” para que um dia regresse e reponha a justiça, anunciando, em simultâneo, o fim do mundo), e por duas vezes, em Abril e Agosto de 2004, enfrentou as forças americanas.

Para evitar ser morto pelos EUA ou ter de se exilar, aceitou depor armas e formou um partido. Mas reactivou os seus fiéis milicianos sempre que julgou necessário: em 2006, quando a destruição parcial da Mesquita al-Askari (que inclui um mausoléu dedicado a Mahdi) fez o país entrar numa espiral de morte e iniciou em definito a mortífera guerra civil (sunitas contras xiitas); voltou a fazê-lo mais recentemente, contribuindo para as batalhas que terminaram com a derrota do Daesh, jihadistas que em 2014 tinham vindo da Síria para conquistar grandes partes de território, incluindo Mossul, a segunda maior cidade do Iraque.

Mas foi também em 2006 que os sadristas se apresentaram pela primeira vez a votos, integrando a Aliança Iraquiana Unida, coligação de forças xiitas. Elegeu 32 deputados, passando a ser o maior bloco desta corrente. Era Sadr a passar de líder de massas a peso-pesado da política. Ou a acumular poderes.

Durante o Verão passado, visitou a Arábia Saudita, envolvida num conflito em várias frentes contra o Irão, e foi mesmo recebido em audiência pelo príncipe herdeiro, o poderoso Mohammed bin Salman. Diz que o fez para tentar aligeirar o isolamento do Iraque face aos países árabes sunitas do Golfo (pedindo maior presença diplomática e mais investimento), mas também para demonstrar que o xiismo do Iraque não será uma extensão da Revolução Islâmica do Irão.

Aliás, Sadr, na linha da escola de Najaf, principal santuário xiita do mundo, no Sul do Iraque, defende uma separação clara entre religião e política. Embora no seu caso seja difícil perceber onde acaba o religioso que estudou jurisprudência islâmica e o líder por trás do que será agora o bloco com mais deputados na Assembleia de Bagdad.

Para os religiosos iranianos, o facto de os comunistas estarem na lista de Sadr torna a sua crítica a Sadr mais simples: numa visita recente à capital do Iraque, Ali Akbar Velayati, próximo do Supremo Líder, ayatollah Ali Khamenei, “um governo com comunistas” seria inaceitável.

“Irão fora”, foi o slogan escolhido pelos apoiantes de Sadr para começarem a festejar a vitória.

Afinal, ele ri

Ao cair da noite, Sadr ainda não tinha comentado os resultados. O primeiro-ministro Abadi, grande derrotado, ao partir como favorito e ficar em terceiro lugar, afirmou-se “pronto para cooperar na formação do governo mais forte que o Iraque possa ter, livre de corrupção”. Em segundo ficou o outro favorito, Amiri, mais próximo do Irão do que Abadi (que se sabe ter boas relações mas não aceitar tudo o que é ditado por Teerão), um ex-dissidente que assumiu a liderança das Brigadas Badr, essenciais no combate aos radicais do Daesh.

Ninguém terá maioria e as negociações para formar governo deverão demorar, mas o poder de atracção de Sadr nunca mais será subvalorizado.

Aos 44 anos, Sadr continua a ser parcialmente insondável. Parece mais novo do que nunca e esboçou um ténue sorriso no sábado, quando se deixou fotografar depois de votar. Tornou-se conhecido com o rosto contraído, em discursos gritados, como se preparado a qualquer momento para o combate ou para incendiar, literalmente, o país.

Um diplomata de um país ocidental que o visitou em Najaf quando a sua aliança eleitoral foi anunciada, descreveu um homem “pragmático, articulado e tranquilo”. Segundo contou à Reuters, Sadr brincou com o seu anel diplomático e mostrou o seu, “com uma efígie do seu pai”. “Não me pareceu um agitador”.