Déjà vu na Argentina?
Será que a dívida externa da Argentina é superior ao sugerido pelas estatísticas internacionais? Uma situação a seguir com interesse, pela sua relevância como estudo de caso, com algum paralelo, para o desempenho futuro da economia portuguesa.
No início de Maio o Banco Central da Argentina subiu pela terceira vez a taxa de juro de referência para 40%.
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No início de Maio o Banco Central da Argentina subiu pela terceira vez a taxa de juro de referência para 40%.
Parece claro que com a subida da taxa de juro de referência o Banco Central procura combater a desvalorização da moeda argentina, o peso argentino.
O peso argentino depreciou-se 63,5% nos últimos 3 anos (um euro valia cerca de 10,0 pesos há três anos e vale agora 27,4 pesos). Ou seja, nos últimos 3 anos o peso argentino depreciou-se, em média, 28,6% por ano, com uma depreciação do peso em relação ao dólar algo inferior porque o dólar se depreciou em relação ao euro neste período. A depreciação do peso parece estar a acelerar: 38,6% no último ano (1 euro valia 16,8 pesos há um ano, vale agora 27,4 pesos) e 9,4% em relação ao euro no último mês, apesar do Banco Central da Argentina ter gasto 5 mil milhões de dólares de reservas a ‘defender’ o peso argentino.
Com tais taxas de depreciação da moeda é quase automático que a taxa de inflação suba, pelo impacto da subida do preço das importações. De facto, a taxa de inflação homóloga em Fevereiro foi de cerca de 25,4%.
Em 2017, o PIB da Argentina cresceu 29,1% em termos nominais e 3,9% em termos reais. A posição de investimento internacional líquida do país é ligeiramente positiva (+4,6% do PIB), a dívida externa bruta representa 46,5% do PIB e a dívida pública representava, em 2016, 54% do PIB.
Ou seja, a posição financeira da Argentina é muito melhor do que a portuguesa. Contudo, a Argentina não está na zona euro – facto que confere alguma ‘protecção’ à economia portuguesa – e registou um défice da balança corrente e de capital de 6,1% do PIB em 2017 (estimado à cotação mais recente do dólar), enquanto Portugal regista uma balança corrente e de capital excedentária (+1,4% do PIB). Um pouco mais de metade do défice da balança corrente da Argentina é explicado pelo défice na balança de rendimento primário, que resulta de elevados pagamentos de juros e de dividendos ao exterior.
A teoria económica sugere que a depreciação da moeda argentina deveria resultar numa redução do défice da balança corrente e de capital e, em particular, numa melhoria do saldo da balança comercial. No entanto, como revela a figura abaixo, o défice da balança corrente e de capital, bem como de todas as suas componentes – bens, serviços, rendimento primário e rendimento secundário –, deterioraram-se nos últimos anos não obstante a enorme depreciação do peso neste período.
O regime democrático argentino é presidencialista, sendo o actual presidente, Mauricio Macri, conservador, em funções desde 2015, o primeiro presidente democraticamente eleito, desde 1916 que, de acordo com a Wikipedia, “não é radical”, (depreende-se, no sentido em que não foi eleito pelo partido radical), nem peronista. Quase sugere que esse texto da Wikipedia sobre o presidente possa ter sido escrito por apoiantes do mesmo.
O actual governo tomou duas medidas controversas em relação à dívida externa da Argentina.
Ao contrário do que determinava a legislação argentina que enquadrava a reestruturação da dívida, no seguimento da entrada em incumprimento que ocorreu em 2001 e que se arrastou durante mais de uma década, em 2016 chegou a acordo com fundos abutres que adquiriram a dívida a uma fracção do seu valor para posteriormente serem, como parece, integralmente ressarcidos – receberam 2,4 mil milhões de dólares por obrigações com valor facial de 614 milhões de dólares, adquiridas por 117 milhões de dólares – criando incentivos perversos em relação a futuros casos de reestruturação de dívida soberana.
E regressou aos mercados financeiros internacionais emitindo grande quantidade de dívida em moeda estrangeira, nomeadamente dólares, a partir de 2017, nomeadamente com emissões a taxas de juro e maturidades muito elevadas. Por exemplo, no final de Junho de 2017, a Argentina emitiu 2,75 mil milhões de dólares de dívida com maturidade de 100 anos, com uma taxa de juro de 7,9%.
Essa escolha, que parece repetir as opções dos anos 90, para já, revelou-se errada. Porque com o dólar a apreciar-se 157% em relação ao peso argentino no último ano (e 624% nos últimos 10 anos), o peso da dívida externa em dólares e em euros em relação ao PIB tende a aumentar.
Quase parece que o objetivo com esta medida de regresso aos mercados financeiros é revisitar o episódio de incumprimento de reestruturação de dívida do início do século. Isto é, quase parece que a reestruturação de dívida que ocorreu desde 2001 não foi suficiente!
O presidente do Banco Central da Argentina desde 2015, Federico Sturzenegger, tem uma carreira multifacetada na academia, parlamento, gestão de banco público, governo (não sem controvérsia) e, mais recentemente, como presidente do banco central. Paradoxalmente, parte da sua investigação académica é precisamente sobre reestruturação de dívida. Uma das suas primeiras medidas à frente do Banco Central foi acabar com as restrições aos movimentos de capitais (i.e., controles de câmbio).
Como o gráfico acima revela, mesmo nos anos ‘bons’ em que a balança de bens era superavitária, os excedentes eram, na prática, utilizados para pagar juros e dividendos sobre a dívida externa do país e outros activos financeiros, respectivamente. Ou seja, na perspectiva das contas externas, apesar da posição de investimento internacional positiva, a Argentina está “escrava” do serviço da sua dívida externa, com muito elevados défices da balança de rendimento primário. Nesse sentido, a situação da Argentina tem alguma semelhança com a situação de Portugal.
Sturzenegger, juntamente com o economista venezuelano Ricardo Hausmann, ficou conhecido por uma nova teoria da “matéria negra”, que argumentava que o défice da balança corrente dos EUA não seria tão elevado como indicado nas estatísticas oficiais, em resultado de activos detidos por residentes dos EUA no exterior, que não apareceriam nas estatísticas oficiais. Porventura, o reverso dessa teoria aplica-se à Argentina. Será que a dívida externa da Argentina é superior ao sugerido pelas estatísticas internacionais?
Uma situação a seguir com interesse, pela sua relevância como estudo de caso, com algum paralelo, para o desempenho futuro da economia portuguesa.