André Saraiva: o multifacetado Mr. A anda à solta em Lisboa
De ascendência portuguesa, a viver em Nova Iorque, o artista André Saraiva ficou conhecido globalmente pela personagem Mr. A, que agora apresenta em exposição na Underdogs e nas ruas de Lisboa.
Não é fácil de situar. Artista, realizador, empresário de hotéis ou de clubes, um dos pioneiros dos graffiti nas paredes das cidades de todo o mundo mas também ilustrador para marcas de luxo, sendo ao mesmo tempo representado em galerias e museus, André Saraiva, 46 anos, é uma personagem em trânsito, filho de portugueses, nasceu na Suécia, cresceu em Paris, e vive há quase quinze anos em Nova Iorque.
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Não é fácil de situar. Artista, realizador, empresário de hotéis ou de clubes, um dos pioneiros dos graffiti nas paredes das cidades de todo o mundo mas também ilustrador para marcas de luxo, sendo ao mesmo tempo representado em galerias e museus, André Saraiva, 46 anos, é uma personagem em trânsito, filho de portugueses, nasceu na Suécia, cresceu em Paris, e vive há quase quinze anos em Nova Iorque.
É essencialmente conhecido pela criação, há quase trinta anos, da personagem Mr. A, uma figura de traço simples, linhas longas elegantes, que terminam numa cabeça redonda e num piscar de olho, que foi ganhando vida no espaço público de inúmeras cidades, por norma devolvendo-nos um sorriso rasgado. “A minha personagem sorri, e claro que pode ser um sorriso luminoso, de encantamento ou de uma certa poesia, como também pode ser irónico ou até amargo”, adverte-nos André Saraiva. “Deixo isso em aberto e à interpretação de cada pessoa.”
Nos últimos anos tem estado cada vez mais presente em Portugal, apesar de aqui não ser tão conhecido como nas capitais mundanas onde faz capas de revistas e é notícia assídua em jornais. Ainda recentemente, o New York Times noticiava que foi um dos sete artistas escolhidos para espalhar personagens famosas da BD como Snoopy e Charlie Brown pelas ruas de Nova Iorque e por outras sete cidades do mundo.
Mas talvez seja esse menor conhecimento de que é alvo em Portugal que o atrai aqui. “Lisboa, nos últimos anos, está cada vez mais popular, mas gosto de vir cá especialmente para estar só”, diz-nos, revelando que tem uma casa perto de Lisboa, “junto ao mar, um sítio simples e sossegado, onde só se ouvem as ondas e as aves, em especial no Inverno. Fico feliz que a cidade seja tão conhecida, mas espero que isso não a faça perder o ar intemporal, fora de tempo, como ocorreu noutros lugares.”
Em 2014 foi alvo de uma exposição monográfica no Museu do Design e da Moda (Mude) de Lisboa, na sequência da qual assinou o mural que ocupa o Campo de Santa Clara, naquela que foi a sua primeira experiência com azulejos. Na exposição do Mude podia-se tomar contacto com a sua acção multifacetada, um olhar pessoalizado sobre a cultura popular e a vertigem da sociedade contemporânea, por entre grafismo, letras, publicidade, vídeos, filmes, fotografia, desenhos, arquitectura, produtos, graffiti ou uma das suas criações mais conhecidas, um Mickey de pénis erecto.
Esta segunda-feira, na galeria Underdogs (Rua Fernando Palha, Armazém 56), em Lisboa, inaugura André Azul, uma exposição que ali se manterá até 16 de Junho. Em exibição estará um conjunto de obras inéditas que cruzam a vivacidade enérgica da sua linguagem com a sobriedade distinta da azulejaria clássica portuguesa, com a personagem Mr. A no centro.
Mais pelo prazer do que pelo negócio
“Esta exposição começou há uns anos através da amizade com o Alexandre Farto (Vhils). Vi uns trabalhos dele em Los Angeles e gostei muito e, depois, através de um grande amigo comum, o artista francês JR, acabámos por nos conhecer. Um dia vim a Lisboa, encontrámo-nos, e ele, sendo um grande artista e também uma pessoa muito generosa, acabou por levantar a hipótese de eu fazer uma exposição na Underdogs, a galeria que a Pauline Fossel e ele gerem. Na altura, a coisa ficou no ar, e agora concretiza-se, apesar de não fazer muitas exposições, porque não gosto de estar muito preso ao mercado. Aqui agrada-me o facto de a galeria estar um pouco fora do circuito da arte contemporânea e de poder intervir na cidade. Faço isto mais pelo prazer do que pelo negócio.”
Uma das coisas que mais o aliciaram na proposta da Underdogs foi poder operar na galeria e, em simultâneo, no espaço público, estando previstas várias intervenções suas. “Em diferentes locais, alguns óbvios e outros nem tanto, haverá desenhos e painéis de Mr. A por descobrir”, revela, acrescentando que as ruas de Lisboa não lhe são estranhas. Desde os anos 1990, quando aqui vinha de férias, que as conhece. “Naquele tempo, quando vinha a Portugal, fartava-me de pintar nas ruas, e sempre achei que aqui existe uma relação saudável entre o público e as intervenções urbanas, algo que nem sempre se vai encontrando no resto Europa.”
Sobre a tensão entre legalidade e ilegalidade que tantas manifestações semelhantes convocam, é taxativo: “Prefiro operar de forma enquadrada e legal, como já aconteceu aqui em acções da Associação Abraço há vinte anos, mas no passado operei também ilegalmente e tive as mais diversas experiências. Algumas dessas tensões esgotaram-se com o tempo, mas quando se faz arte não podemos imaginar que vamos agradar a todos.”
Na exposição da Underdogs existe um material que predomina: o azulejo. E não é por acaso. “Ao longo dos dois anos que demorou a feitura do painel da Feira da Ladra, fui-me apercebendo de que o azulejo e a cerâmica têm uma luz e uma maneira de a reflectir que é incrível e, por outro lado, o tipo de material permite que as cores perdurem no tempo. Não se degrada. É intemporal. É uma técnica que é perfeita para a arte pública.”
Depois de tantos anos a trabalhar com a fábrica de cerâmica da Viúva Lamego, André diz que já faz parte da mesma. “A feitura do painel levou três anos, e durante esse tempo aprendi muitas técnicas com história, mas em simultâneo também fomos inventando outras que não existiam.”
Nas paredes da galeria estão vários painéis em azulejo, de tamanhos diferentes, representando Mr. A e Miss A (a versão feminina), pintados à mão, com os tons azulados a predominar. Há também peças de mármore cor-de-rosa português, que ele foi descobrir no Alentejo, e que tem vindo a utilizar não só na feitura de esculturas como em todos os lugares de que é proprietário, como os hotéis, cafés ou clubes. Para ele, está tudo interligado. “O que faço na minha vida faz parte da minha arte, seja um hotel, um café, uma discoteca ou um momento social. A minha atitude perante essas coisas é a mesma que tenho quando faço um desenho.”
E dá um exemplo: “A primeira obra de arte que tive era uma T-shirt do Keith Haring, que ainda guardo. Era adolescente e aquilo foi uma descoberta: perceber que podia fazer-se arte através de uma T-shirt. Foi aí que percebi que o suporte era o menos relevante, o que se quer expressar, isso, sim, é o que interessa. Foi por isso que comecei nos graffiti. O que me interessou desde sempre foi encontrar formas alternativas de fazer, viver, ser criativo e divertir-me. A liberdade é o mais importante.”
Em Portugal tem sido surpreendido pela quantidade e qualidade de artistas da geração de Vhils que vai conhecendo. “Revejo-me na forma como a arte, seja ela qual for, pode chegar a pessoas que nem sempre se interessam por ela”, afirma, acrescentando que tem ficado encantado pela qualidade das obras que tem observado em espaço público. “Há realmente uma fornada de artistas muito bons e impressiona-me a quantidade de nomes, até porque Lisboa não é exactamente Nova Iorque.”
Estúdio na Trafaria
Também por isso, nos próximos anos, deseja passar mais tempo em Portugal. Projectos não lhe faltam. Um deles situa-se na margem sul de Lisboa, mais exactamente na Trafaria, onde irá criar um espaço dedicado às artes numa antiga fábrica. “Será o meu estúdio e também servirá para acolher outros estúdios. A ideia é convidar pessoas que admiro — de Nova Iorque, Los Angeles, mas não só — e desafiá-los a passarem ali temporadas em regime de residência artística”, afirma, enaltecendo o potencial que todo o eixo Almada-Trafaria representa para ele. “A divisão do rio Tejo faz-me lembrar o Hudson, que separa Manhattan de Brooklyn. Durante anos, Brooklyn também era vista com distanciamento, mas foi ganhando centralidade. A margem sul tem esse potencial também. Detesto fenómenos de gentrificação, mas existem muitos espaços por explorar e na verdade, ao redor, existe tudo o que é necessário para algo acontecer.”
Se tudo correr como previsto, o estúdio será inaugurado no Verão, altura em que também abrirá um pequeno clube nocturno, perto da Praça do Camões, em Lisboa, inspirado no conhecido clube Le Baron, que mantém há muito em Paris. “Encontrámos uma antiga discoteca dos anos 1980 que está desactivada e vamos lá fazer um pequeno bar”, esclarece. Ao mesmo tempo prepara um livro sobre a sua múltipla actividade em que trabalha há mais de um ano. “Está muito atrasado, mas é a vida, não é fácil dar sentido a tudo o que vou fazendo”, diz. “Às vezes até eu me baralho.”