Três minutos antes de a maré encher
Se por ora podemos não conseguir avistar Cláudia Pascoal e Isaura no meio da agitação, é certo que virão à tona quando a maré baixar.
O Hugo Pinto Santos perdoar-me-á a citação de Valter Hugo Mãe, mesmo que em título, para que dê corpo a uma ideia sobre o mais kitsch dos temas da actualidade – a Eurovisão. A Naifa fê-lo antes, muito antes, para embrulhar um conjunto de canções memoráveis (o que não é o caso do rol que esteve a concurso neste festival internacional da canção). De modo que a originalidade falha me desculpa e liberta. Valter Hugo Mãe far-me-á o favor de conceder que este verso me seja um ponto de partida para uma imensidão de destinos e descobertas mais ou menos marítimas desde que o seu livro brotou da biblioteca em parelha com o seu útero divino.
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O Hugo Pinto Santos perdoar-me-á a citação de Valter Hugo Mãe, mesmo que em título, para que dê corpo a uma ideia sobre o mais kitsch dos temas da actualidade – a Eurovisão. A Naifa fê-lo antes, muito antes, para embrulhar um conjunto de canções memoráveis (o que não é o caso do rol que esteve a concurso neste festival internacional da canção). De modo que a originalidade falha me desculpa e liberta. Valter Hugo Mãe far-me-á o favor de conceder que este verso me seja um ponto de partida para uma imensidão de destinos e descobertas mais ou menos marítimas desde que o seu livro brotou da biblioteca em parelha com o seu útero divino.
“Três minutos antes de a maré encher”. Não descreveria melhor o interlúdio musical que o Altice Arena acolheu entre a nevrótica festa de gente aos berros em cenários quinhentistas, palcos fumegantes, vestidos multimédia, cacarejos, rodopios circenses e revisitações nu metal, entre essa festa gritada e aquela que viria depois de conhecidas as votações e a distribuição dos concorrentes na tabela classificativa, uma festa de descompressão – em êxtase para uma única comitiva, a de Israel, em desalento para a maioria e em assombroso desamparo para as últimas classificadas, as anfitriãs Cláudia Pascoal e Isaura. Lá chegaremos. Primeiro, o interlúdio.
Salvador Sobral não é deste mundo. Se provas faltassem, a noite deste sábado em Lisboa pô-las diante de toda a gente. O cantor que venceu a Eurovisão no ano passado subiu ao palco com o pianista Júlio Resende para apresentar o seu novo single, Mano a mano, e foi como se tivéssemos sido transportados para uma dimensão paralela. Um universo em que as pessoas são exactamente as mesmas mas estão enlevadas; em que as bandeiras e as perucas e tudo o que é ruído esvanece, perde centralidade, omnipresença no espectáculo; em que as explosões de histerismo dão lugar a pedidos de silêncio da plateia, que parece querer ouvir a música.
Não há ali mais nada: há a música, e só. Ninguém está a seduzir a câmara, a impressionar o público com um movimento ou um adereço. Salvador canta como se estivesse em casa, entre amigos, quando o que faz é actuar para cerca de 200 milhões de pessoas. Quem o ouve, ali, respeita-o, ouve-o. O motivo do alinhamento pode até ter sido outro, mas o facto de o cantor português ter apresentado primeiro Mano a mano fez com que o dueto com Caetano Veloso, em Amar pelo dois, logo a seguir, já se escutasse em suspensão. Com a plateia a cantar o refrão de forma controlada, ténue, como se não quisesse exceder-se, sobrepor-se, perder o momento.
A Eurovisão decorreu antes e depois, sem permitir que a finura da música de Salvador lhe afectasse a sua colérica ferocidade nem a pop vertiginosa. A vitória em Kiev também não passou disto: um interlúdio – maior, mas um interlúdio. Era, por isso, inevitável que na final de Lisboa se navegasse tanto para acostar ao porto de onde partimos: uma megaprodução cujo momento alto era reproduzir o que de fresco a edição do ano anterior deu ao festival. Um viço que O jardim ficou longe de igualar, mais por questões conjunturais do que pela proposta feita por Isaura e Cláudia Pascoal. Os eurofestivaleiros não se comoveram com o tema, ignoraram-no até durante a actuação, circunstância que lhe deixa os méritos intactos. Veremos que sim.
Os portugueses presentes no pavilhão anteriormente conhecido como Atlântico provaram, aliás, que O jardim foi um digníssimo representante: no final, apesar da derrota pesada e com a comitiva nacional desolada, deixaram-se ficar à espera para as aplaudir, elas que deixaram sair quase toda a gente do green room à sua frente. Aquele “Portugal! Portugal”, aquele “Cláudia! Cláudia!” tinham o mesmo fundo do “Obrigado, Salvador!” que alguém havia gritado antes. Já pelas ruas, a canção que se entoava era a da dupla portuguesa. E se por ora podemos não conseguir avistá-las no meio da agitação, é certo que virão à tona quando a maré baixar.