Iraque vota pela primeira vez depois do pesadelo do Daesh

Nenhum dos três maiores grupos iraquianos está unido à volta dos seus candidatos, e as lutas sectárias continuam como há 15 anos, quando Saddam Hussein foi derrubado.

Foto
Poster de uma candidata em Najaf Alaa al-Marjani/REUTERS

Pela primeira vez desde a derrota do grupo jihadista Daesh, os iraquianos vão às urnas neste sábado, numa eleição que vai determinar a forma com o país poderá sarar feridas e divisões – e o resultado pode mudar o equilíbrio de poderes na região.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Pela primeira vez desde a derrota do grupo jihadista Daesh, os iraquianos vão às urnas neste sábado, numa eleição que vai determinar a forma com o país poderá sarar feridas e divisões – e o resultado pode mudar o equilíbrio de poderes na região.

Os três grandes grupos étnicos iraquianos – a maioria xiita e as minoria sunita e curda – não se entendem há décadas, e as lutas sectárias estão tão acesas como estavam há 15 anos, quando Saddam Hussein foi derrubado.

A escolha do novo primeiro-ministro e do Parlamento ocorre na semana em que o Presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos abandonam o acordo sobre o programa nuclear iraniano, aumentando a tensão entre os dois principais aliados do Iraque: Teerão e Washington.

Quem ganhar vai enfrentar um gigantesco desafio: reconstruir o Iraque depois de quatro anos de guerra contra o Daesh; enfrentar uma economia destruída; equilibrar-se entre os interesses das potências estrangeiras e dos seus patronos; e manter a frágil unidade do país perante a crescente tensão sectária e separatista.

Foto
Comício do primeiro-ministro, Haider al-Abad Abdullah Dhiaa al-Deen/REUTERS

"Queremos segurança. Temos roubos, assassínios, roubos e raptos. Não tínhamos isto antes. Nos últimos 15 anos as pessoas ficaram destruídas", disse Khalid Radi, de 29 anos.

O primeiro-ministro em fim de mandato, Haider al-Abadi, parte com uma pequena vantagem, mas a vitória está longe de ser certa. Apesar de ter anunciado a derrota do Daesh no seu primeiro mandato de quatro anos, enfrenta um forte desafio com as tensões sectárias inflamadas pelo seu antecessor e a unidade posta em causa com a tentativa de independência curda.

Abadi tem sido criticado pela persistente corrupção no governo, pelas más condições económicas e pelas medidas de austeridade introduzidas pelo seu gabinete após a queda global nos preços do petróleo, que também ajudaram a pagar o preço da luta contra o Daesh.

Também não pode confiar apenas nos votos da sua comunidade, já que a maioria xiita está muito dividida. Em vez disso, está a tentar conquistar apoio junto dos outros grupos.

Muitos sunitas olham para Abadi como uma alternativa menos sectária do que os seus dois principais rivais xiitas, e dão-lhe crédito pela libertação das suas áreas das mãos do Daesh.

Mas a relação de Abadi com os curdos é má, depois de Bagdad ter imposto sanções à região semi-autónoma do Curdistão na sequência dos esforços falhados a favor da independência, no ano passado.

Negociações demoradas

Mesmo que a Aliança da Vitória de Abadi conquiste a maioria dos lugares, ainda terá de navegar por entre as complicadas negociações para formar uma coligação de governo.

Os seus principais opositores são o seu antecessor, Nuri al-Maliki, e Hadi al-Amiri, comandante de uma milícia xiita apoiada pelo Irão.

Foto
As forças de segurança votaram dois dias antes Haider al-Abad/REUTERS

Ambos têm uma base eleitoral mais fervorosa do que Abadi, que agrada mais aos eleitores pragmáticos, apreciadores das suas melhores relações com o mundo exterior e da sua ligação mais forte a todos os grupos, necessária para evitar um derramamento de sangue e para atrair investimento.

Tal como Abadi, Hadi al-Amiri enaltece a vitória sobre o Daesh, embora a sua narrativa seja mais atractiva porque ele esteve na linha da frente, sendo visto por muitos xiitas como um herói de guerrra.

Maliki, afastado em 2014 após oito anos no poder e depois de ter perdido um terço do país para o Daesh, está a tentar um regresso à vida política. Em contraste com a mensagem mais apelativa de Abadi em relação a todos os grupos, Maliki apresenta-se outra vez como o grande defensor dos xiitas, e propõe acabar com o modelo não oficial de partilha de poder, que permite a todos os principais partidos terem representantes no governo.

Desde que Saddam Hussein caiu, em 2003, pondo fim a décadas de domínio da minoria sunita, as posições mais elevadas na política iraquiana têm sido divididas, de forma não oficial, entre os principais grupos.

O cargo de primeiro-ministro tem sido reservado a um xiita, o de presidente do parlamento a um sunita e o de Presidente do país, meramente simbólico, a um curdo – os três são escolhidos pelo parlamento.

A Constituição iraquiana determina um prazo de 90 dias após o anúncio oficial dos resultados das eleições para a formação de governo, e as negociações podem ser muito demoradas.

O novo governo terá também de enfrentar a crescente tensão entre os Estados Unidos e o Irão.

Como primeiro-ministro, Abadi tem sido elogiado por conseguir navegar por entre os interesses opostos dos seus dois principais apoiantes – enquanto o seu governo mantém boas relações com o Irão, Abadi é visto como um líder equilibrado, e os diplomatas ocidentais dizem que ele seria o candidato ideal.

Maliki, que lutou pela retirada das tropas americanas, e Amiri, que fala farsi e passou anos no exílio no Irão durante a era de Saddam Hussein, são vistos como muito próximos do Irão.

Divisões em todo o país

A eleição realiza-se também numa atmosfera de divisões e de desilusão entre os três maiores grupos do Iraque.

O voto xiita está dividido porque muitos estão descontentes com os seus líderes após 15 anos de poder que só resultaram em violência e desemprego, e que arrasaram as infra-estruturas.

Mas se os xiitas estão divididos porque têm líderes em demasia, os árabes sunitas estão divididos porque não têm nenhum líder. Os sunistas estão no ponto mais baixo de sempre. Milhões arrastam-se em campos de deslocados, muitos tentam reconstruir as casas em cidades reduzidas a escombros – e sentem-se colectivamente rotulados como simpatizantes do Daesh.

E os políticos sunitas que ocuparam cargos no governo estão desacreditados e não existe uma liderança sunita.

Os curdos iraquianos, por seu lado, culpam os seus líderes por terem aberto mão de uma autonomia conquistada a pulso com um referendo independentista fracassado, e podem puni-los votando em partidos não tradicionais, o que poderá pôr em causa a histórica unidade curda no parlamento.

Os eleitores vão às urnas este sábado, mas as forças de segurança e os iraquianos no estrangeiro começaram a votar quinta-feira. A comissão eleitoral diz que os resultados serão anunciados "horas" depois do encerramento das urnas.

O Daesh ameaçou atacar secções de voto, na sequência de um recente aumento de incidentes em áreas reconquistadas, e muitos outros eleitores simplesmente não acreditam que as eleições tragam alguma mudança.