O “tigre esfomeado” de Gaza ameaça sair da jaula

No protesto da Grande Marcha do Retorno há alegria, adrenalina, desespero, e um grande suspense sobre o que acontecerá nos próximos dias – quando Israel faz 70 anos e o protesto termina. Os palestinianos vão, em crescendo, para o dia de “ser ou não ser”.

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Há um pequeno ponto no meio do nada, onde nunca ninguém vem, e que agora parece um festival: papagaios a voar no ar com as cores da bandeira palestiniana, vendedores de milho no carvão ou de chá em bules de metal, há um grupo de rapazes a dançar a tradicional dabka. Há música e buzinadelas e uma atmosfera entre o festivo e o frenético.

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Há um pequeno ponto no meio do nada, onde nunca ninguém vem, e que agora parece um festival: papagaios a voar no ar com as cores da bandeira palestiniana, vendedores de milho no carvão ou de chá em bules de metal, há um grupo de rapazes a dançar a tradicional dabka. Há música e buzinadelas e uma atmosfera entre o festivo e o frenético.

Este “campo” perto da Cidade de Gaza é um dos cinco da Grande Marcha do Retorno, estabelecidos na “zona de ninguém” que Israel impôs para evitar infiltrações no seu território, habitualmente desertas. É uma mistura de festa, manifestação, adrenalina, desespero. Desde que começou, a 30 de Março, morreram já 44 palestinianos, um deles nesta sexta-feira, e centenas ficaram feridos.

Quanto mais no início da estrada – serão uns 700 metros – mais festiva a atmosfera. Quanto mais perto de Israel, mais frenética. O final é marcado por uma coluna de fumo negro de pneus a arder, o modo de os manifestantes dificultarem a visibilidade aos snipers israelitas que estão do outro lado. De vez em quando, partem de lá latas de gás lacrimogéneo a deixar um rasto no céu e bandos de pássaros em debandada. A multidão divide-se, pequenos grupos começam a fugir e a gritar "gás, gás!", mas de vez em quando uma só pessoa corre em direcção à lata para a cobrir com terra e esta não espalhar o gás.

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Uma manifestante carrega pneus durante o protesto REUTERS/IBRAHEEM ABU MUSTAFA

A Marcha do Retorno, que começou a 30 de Março, foi uma ideia para um protesto em Gaza feita numa rede social rapidamente adoptada pelos grupos palestinianos, do Hamas, no poder na Faixa de Gaza, à rival Fatah, e que gerou uma onda de entusiasmo organizativo e um rastilho para um descontentamento latente entre milhares de habitantes do território que, já avisaram as agências internacionais e responsáveis do lado palestiniano e até israelita, está a atingir um ponto de ruptura de crise humanitária.

O Direito de Retorno é o direito que os palestinianos reivindicam para os refugiados que fugiram ou foram expulsos quando foi criado o Estado de Israel, no dia 14 de Maio de 1948, e também para os seus descendentes, que hoje serão mais de cinco milhões. É um direito importante para os palestinianos, e sobretudo em Gaza, onde dois terços dos quase dois milhões habitantes são refugiados. Mas para Israel, este retorno é inaceitável porque significaria uma alteração do equilíbrio demográfico e que os judeus poderiam ser uma minoria no Estado hebraico.     

A marcha é caótica mas tem alguma lógica. A primeira certeza é que há uma faixa de uns metros muito perto da vedação que separa o território de Israel onde quem entra arrisca ser atingido a tiro, provavelmente morto. Há manifestantes que passam esta linha para tocar na vedação, desafiando o perigo. Os snipers têm disparado: muitas vezes para pernas, para impedir a progressão, outras vezes têm matado manifestantes, dizendo que eram membros do Hamas, que pretende infiltrar-se e levar a cabo ataques em Israel.

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Uma mulher usa uma fisga para atirar pedras às forças israelitas REUTERS/IBRAHEEM ABU MUSTAFA

Ibrahim, vai para casa!

Mas de Gaza a situação é vista de um modo muito diferente. Participar na marcha e arriscar aproximar-se mais um pouco é uma hipótese para um habitante de Gaza ficar “frente a frente” com um soldado israelita, - a face da ocupação que normalmente não é vista ao perto (apenas em forma de drones que sobrevoam os territórios, dos balões de recolha de imagens, etc.).

“Queremos que nos reconheçam”, diz o estudante Ibrahim, cuja alcunha é Denis pela sua adoração pelo escritor Denis de Rougemont. “Durante o genocídio [é assim que muitos habitantes de Gaza se referem à última guerra no território, em 2009] eles usaram aviões. Aqui na fronteira está uma pessoa, estamos a olhar um para o outro. Mas mesmo assim eles disparam.”

Ibrahim Zanoon foi alvo de um desses disparos. O fotojornalista, com um colete com a indicação de imprensa, estava perto da fronteira e no momento em que se virou para fotografar um homem ferido por um tiro foi ele próprio atingido na mão. Acredita que se não se tivesse virado poderia ter morrido.

Conta como a dada altura estava a 20 metros de um soldado: “Tirei-lhe uma foto”. Só depois, ao rever as imagens, é que viu a cara. Como era a expressão do militar? Encolhe os ombros. “Nada.”

Nas últimas sextas-feiras, os soldados levam altifalantes para comunicar com os manifestantes e por vezes avisam quem se está a aproximar demais. “Tu, camisa preta, se não te afastas disparamos”, exemplifica. E às vezes dizem (em árabe): “Ibrahim, Ahmed, vai para casa”. E não, eles não sabem que ele se chama Ibrahim. “Estão só a atirar os nomes mais comuns aqui”, diz meio a rir.

Mas muitos manifestantes têm medo de ser reconhecidos e levam máscaras para os protestos – um deles tornou-se conhecido por ir com fatos vistosos, já foi de Pai Natal e de Batman. E a capacidade de Israel reconhecer informação não é subestimada: durante a guerra de 2009, alguns habitantes de Gaza relataram como receberam telefonemas dizendo “Sai de casa dentro de cinco minutos”, imediatamente antes de a casa ser bombardada.

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Latas de gás pimenta foram disparadas pelas forças israelitas contra os manifestantes palestinianos, que reclamam o direito a voltar à sua terra natal REUTERS/IBRAHEEM ABU MUSTAFA

Israel vigia o território por vários meios – aéreos, por exemplo, com câmaras, ou através de informadores. No ponto de saída para Israel, no posto de controlo do Hamas, há um aviso aos potenciais colaboracionistas: uma fotografia de um homem com a mão na testa com ar arrependido e uma legenda com a frase “tem cuidado com o que vais dizer”.

Da experiência do fotógrafo de vários dias na Marcha de Retorno (que termina no dia 15, o dia a seguir a Israel celebrar a sua criação), Ibrahim aponta duas razões principais para a participação e para assumir o risco: “Pessoas que acreditam no direito de retorno e pessoas em situação económica muito difícil”. Muitos habitantes de Gaza dizem que apenas sobrevivem. Alguns dizem que estão a morrer lentamente, esta é uma morte rápida, diz Ibrahim.

"Um dia histórico"

Num encontro com jornalistas em Gaza, o líder do Hamas no território, Yaya Sinwar, comentou que as condições que teve na prisão em Israel eram melhores que as condições “na grande prisão chamada Gaza em termos de comida, electricidade e cuidados médicos”, contam os jornalistas que estiveram na conferência de imprensa.

A Faixa de Gaza está fechada excepto para quem tem autorizações ocasionais de saída por Israel (que podem ser rejeitadas sem explicação, por isso muitos jovens hesitam em fazer declarações a jornalistas dando o apelido – dizem que pode prejudicá-los quando tentarem de novo sair) ou por Sul, pelo Egipto, (ainda mais irregular na abertura da fronteira, em geral uma vez a cada três meses durante três dias).

Um desentendimento entre a Fatah, no poder na Cisjordânia, e o Hamas, em Gaza, levou a uma redução nos salários dos funcionários públicos e a um corte ainda maior do fornecimento de energia, que existe apenas durante quatro horas diárias (não certas e não sempre no mesmo horário).

O mar, que antes era o ponto de escape do território, está poluído porque não há energia suficiente para tratar os esgotos.

Por isso, Sinwar comparou os palestinianos de Gaza a “um tigre esfomeado”, cuja jaula é a barreira entre eles e Israel.

A ideia que todos transmitem é que há um crescendo nas manifestações. Outro fotógrafo, Mahmoud Abu Salam, diz que os protestos desta sexta-feira foram pequenos porque está muita gente a preparar-se para segunda-feira, quando a embaixada americana é inaugurada em Jerusalém, uma decisão do Presidente Donald Trump que reconhece a cidade como capital do país, apesar de os palestinianos reivindicarem a parte Oriental para capital de um futuro estado. Preparam-se também para terça-feira, quando se assinala a Nakba (catástrofe), quando os palestinianos fugiram ou foram expulsos das suas casas a seguir à fundação do Estado de Israel.

As expressões são um pouco crípticas, e ninguém arrisca dizer se há um plano organizado para terça-feira e, se houver, é passar a barreira: “Vai ser um dia histórico para a Palestina”, diz apenas Mahmoud Abu Salam. “Vai ser um dia de ser ou não ser”.