A grande ágora americana

Tudo em A Casa Golden, o novo romance de Salman Rushdie, se passa em território reconhecível. Um território com centro nos “Jardins”, um refúgio de West Village, Nova Iorque. É ali o palco da tragédia, na América como na Grécia.

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O Bairro Histórico dos Jardins Macdougal-Sullivan é o refúgio urbano de uma elite discreta das mais diversas origens

Há um homem agachado à janela do segundo andar de uma casa. Fuma um cigarro e atira a cinza e a baforada para o jardim. Veste o que parece um pijama azul e olha ora para a rua, ora para o que parece ser um ecrã no interior da casa. Talvez seja uma televisão. É domingo, o céu está cinzento e chega o som de gargalhadas do restaurante italiano bem perto. De resto, só o vento nas árvores e o barulho meio oco dos carros que passam na Sexta Avenida. Há ainda as tulipas meio murchas com o calor repentino do dia anterior, a campainha de uma bicicleta que pede espaço para continuar, e pouco mais. Tudo está tranquilo no bairro onde Salman Rushdie encenou a grande tragédia americana do princípio da era Trump e, no centro do bairro, os jardins, palco da metáfora de um mundo — público e privado — em crise. 

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Há um homem agachado à janela do segundo andar de uma casa. Fuma um cigarro e atira a cinza e a baforada para o jardim. Veste o que parece um pijama azul e olha ora para a rua, ora para o que parece ser um ecrã no interior da casa. Talvez seja uma televisão. É domingo, o céu está cinzento e chega o som de gargalhadas do restaurante italiano bem perto. De resto, só o vento nas árvores e o barulho meio oco dos carros que passam na Sexta Avenida. Há ainda as tulipas meio murchas com o calor repentino do dia anterior, a campainha de uma bicicleta que pede espaço para continuar, e pouco mais. Tudo está tranquilo no bairro onde Salman Rushdie encenou a grande tragédia americana do princípio da era Trump e, no centro do bairro, os jardins, palco da metáfora de um mundo — público e privado — em crise. 

“Os Jardins eram o meu microcosmo, e todos os dias eu via criaturas da minha imaginação a devolverem-me o olhar das janelas de casas da Macdougal e da Sullivan, a implorarem por nascer”, diz René Unterlinden, o jovem aspirante a cineasta que elege para personagens principais da sua futura obra os elementos da família conhecida por Golden — um velho pai e três filhos adultos com diversos tipos de disfunções —, uma família que chega aos Jardins no fim de 2008, justamente no momento da eleição de Barack Obama. 

O território de A Casa Golden é uma espécie de quadrilátero no West Village de Nova Iorque conhecido como o Bairro Histórico dos Jardins Macdougal-Sullivan, um refúgio urbano constituído por 22 casas, dos números 74 a 96 da Macdougal e 170 a 188 da Sullivan, entre as ruas Bleeker e Houston. Ou seja, um núcleo privilegiado, associado ao dinheiro antigo de Nova Iorque, onde vive uma elite de gente composta por elementos das mais variadas origens e que quer passar discreta. Foi nesse espaço real que Rushdie construiu a sua ficção, a ágora a partir da qual René exercita a sua imaginação. “As residências originais de estilo neogrego da Macdougal e da Sullivan, construídas na década de 1840, tinham sido remodeladas segundo o estilo neocolonial na de 1920 por arquitectos ao serviço de um tal Mr. William Solange Coffin, que vendia mobiliário e tapetes, e foi nessa época que os pátios das traseiras foram juntos para formar os Jardins comunitários, limitados a Norte pela Rua Bleeker e a Sul pela Houston e reservados para uso privativo dos moradores das casas cujas traseiras com eles confinavam.” 

Além dos recém-chegados Golden, que apesar do mistério que fazem acerca da sua origem se saberá pouco depois terem chegado de Bombaim, há nessa comunidade secretamente observada por René — filho de belgas — italianos, russos, britânicos, argentinos, birmanesas, enfim, o mundo, e nesse mundo uma bolha prestes a rebentar. Pelo menos na perspectiva de René, o imaginador, protagonista do romance que quer ser uma crónica social, política e cultura de um tempo. “Com o egocentrismo ilimitado da juventude, eu começava a imaginar um grandioso filme, ou uma série de filmes do tipo Decálogo, que abordavam a migração, a transformação, o medo, o perigo, o racionalismo, o romantismo, a mudança de sexo, a cidade, a cobardia e a coragem: nada menos do que um retrato panorâmico da minha época. O meu estilo preferido seria uma coisa a que eu secretamente chamava Realismo Operático, e o meu tema o conflito entre o Eu e o Outro.” 

Esta é a proposta criativa de René, confessada logo no início do livro, quando se percebe que ele será o eu que narra. E nessa asserção pode ler-se quase uma declaração das intenções de Salman Rushdie neste romance. Na voz de René ecoa a de Rushdie. A diferença é que a ambição de Rushdie carrega a experiência de quem já escreveu muitos livros diferentes e René não fez nada além de imaginar a vida dos Golden a partir da janela da sua casa que dá, através dos jardins, para a mansão onde aqueles vivem. É nesse espaço de confluência, entre olhar e ser olhado, que desfilam as personagens construídas para representarem cada um dos tipos sociais que Rushdie identificou como capazes de encarnar o tempo presente. 

“Eu sou uma câmara com o obturador aberto, totalmente passiva, que regista, não pensa”, define-se René, citando Christopher Isherwood em Adeus a Berlim. Não se limitará, no entanto, a ser um espectador. Rushdie quis que ele ultrapassasse a fronteira e passasse a ser personagem na própria ficção que vai construindo, e nisso o livro é uma reflexão sobre o próprio processo criativo, com os Jardins a funcionarem como a América. Será dali que ele vai inventar o mundo; nessa intenção, real e irreal misturam-se num jogo em que o cenário é a única coisa palpável. Está ali, no West Village, no sítio onde o homem que aparenta ter um pijama azul fuma à janela num domingo de manhã destes anos em que Donald Trump, chamado de Joker no livro, é o Presidente do país.