A Eurovisão e o Festival da Canção não é só música
Dois livros, uma história de Portugal e da Europa através dos festivais. Apresentam-se Eurovisão, de Nuno Galopim, e Portugal 12 Pts, de João Carlos Callixto e Jorge Mangorrinha.
Lugano, na Suíça, 1956. Primeiro festival da Eurovisão. 14 canções a concurso. Uma delas, Im wartesaal zum großen Glück, é interpretada pelo alemão Walter Andreas Schwarz. De ascendência judaica, era um sobrevivente dos campos de concentração nazis. No palco, cantou sobre esquecer o passado e abraçar o presente.
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Lugano, na Suíça, 1956. Primeiro festival da Eurovisão. 14 canções a concurso. Uma delas, Im wartesaal zum großen Glück, é interpretada pelo alemão Walter Andreas Schwarz. De ascendência judaica, era um sobrevivente dos campos de concentração nazis. No palco, cantou sobre esquecer o passado e abraçar o presente.
Portugal, 2017. O Festival da Canção regressou renovado. Depois de um ano de pausa, a equipa reunida pela RTP decidira convidar intérpretes que representassem o presente da música portuguesa de uma forma transgeracional e abrangente esteticamente. Surge então uma certa Amar pelos dois, de Luísa Sobral, interpretada pelo seu irmão, Salvador. Na Eurovisão, em Kiev, foi o que se sabe: 53 anos depois de se estrear na competição, Portugal ganhou-a por fim. Cinco décadas de uma história preenchida de música e de acontecimentos, do debate nacional inicial, em que até participava David Mourão-Ferreira, ao definhar da década de 1990 e daí ao renascimento o ano passado.
Festival da Canção e Eurovisão. Duas histórias ligadas entre si, mesmo quando de costas voltadas, como em 1970, quando Portugal suspendeu a sua participação, injustiçado e ferido no orgulho pelo penúltimo lugar que a Europa atribuiu, em 1969, à Desfolhada de Simone de Oliveira. Duas histórias contadas em dois livros agora editados: Eurovisão – dos Abba a Salvador Sobral (Esfera dos Livros), de Nuno Galopim, e Portugal, 12 Pts (Âncora Editora), de João Carlos Callixto e Jorge Mangorrinha. “Na história eurovisiva, há sempre a expressão de um passo em frente face ao que é a evolução da história política e social”, diz o autor do primeiro. “Até ao início da década de 1980, o Festival da Canção era o sítio onde todos queriam estar, os cançonetistas, os vocalistas dos conjuntos rock que se lançavam a solo, até os cantautores”, diz João Carlos Callixto. “Mesmo Zeca Afonso”, revela. “Não chegou a concorrer, mas enviou canções a concurso, que não foram aprovadas”.
Evento musical e televisivo, a Eurovisão serve de espelho daquilo que vem sendo a história da Europa. É isso que nos conta Eurovisão – Dos Abba a Salvador Sobral, livro do jornalista Nuno Galopim, supervisor criativo da edição lisboeta cuja final decorrerá amanhã e um dos responsáveis pela renovação do Festival da Canção em 2017. Editado a 4 deste mês, terá apresentação da Feira do Livro de Lisboa, dia 2 de Junho, com a presença de Salvador Sobral, e dia 9 de Junho, na FNAC do NorteShopping, em Matosinhos. Na capa da obra, abaixo de fotos de figuras da Eurovisão como Salvador Sobral, Celine Dion, Abba ou Conchita Wurst, lemos: “Canções que contam a história da Europa” – partindo da vitória portuguesa em Kiev, o ano passado, que acompanhou no local, é precisamente essa história que nos conta o autor.
O que temos aqui é, portanto, a história do festival na vertente política, social, musical e tecnológica. “Nasceu quando ainda havia mais aparelhos de rádio que televisões espalhados pela Europa”, e, hoje, “corresponde à linha da frente do que existe nas várias linguagens televisivas na forma de pensar imagens e som” - sem esquecer a internet, grande responsável pelo rejuvenescimento neste século (nas emissões, a faixa etária entre os 18 e 34 anos é a que mais tem crescido). Musicalmente, explica Nuno Galopim, foi-se afastando e integrando, em ciclos e contraciclos, àquilo que eram os sinais dados na música popular urbana, ora abraçando o yé-yé na década de 1960, “com a France Gall ou Sandie Shaw”, ora “dirigindo-se para a canção ligeira de grande aparato orquestral, quando a cultura pop está [na década de 1970] a descobrir os cantautores ou o glam rock”. Ao longo dos anos, por ali passa o disco, manifestam-se as electrónicas e traços da world music.
Em 2001, dá-se um acontecimento determinante, quando a organização dinamarquesa escolhe como palco “uma sala gigantesca de 38 mil lugares”. A partir daí, “o festival abre-se à plateia e as pessoas com pose firme e hirta, com vestido de noite e fato de gala, são substituídas pelos fãs, entusiasmados e de braços no ar”. A música tem ido ao encontro desse novo público. Sendo certo “o peso importante do que é mais normativo na pop actual”, marcada por “figuras tutelares como Justin Timberlake, Justin Bieber, Beyoncé ou Rihanna”, defende Nuno Galopim que, no presente, “há mais diversidade que nunca”. Amar pelos dois aponta, é disso reflexo.
A relação com a realidade social e política, essa, mantém-se presente. Se em 1956, um cantor alemão carregava em si a tragédia que assolara a Europa na década anterior, se em 1990 surgiam a concurso canções que falavam sobre a queda de muros, enquanto o de Berlim ruía no centro do continente, este ano a Itália, representada por Ermal Meta e Fabrizio Moro, abordam o flagelo do terrorismo em Nom me avete fatto niente, e, pela França, Madame Monsieur canta Mercy, dedicada aos refugiados que tentam atingir terreno seguro na Europa. E há também, claro, Toy, a canção a que dá voz a israelita Netta, “um repensar dos valores no feminino que está claramente em sintonia com uma das linhas de pensamento do nosso tempo”. Enquanto isso, há cinco décadas…
“Quantas da canções eram, realmente, representativas dos seus países? Quantas delas tinham raízes fundadas nas tradições e nos sentimentos dos respectivos povos?”, lia-se em tom inflamado, indignado, num Diário Popular de 1966, no final do festival da Eurovisão, realizado no Luxemburgo, em que marcou presença Madalena Iglesias e o icónico Ele e ela. Era a terceira participação portuguesa e obteve precisamente o mesmo lugar das anteriores: 13.º lugar.
A Eurovisão surgira como forma de Portugal se mostrar à Europa, mas não havia forma de a Europa apreciar o que Portugal tinha para lhe cantar. “Nessa participação, que era apenas a terceira, já se estava a questionar porque nunca conseguíamos uma pontuação de jeito na Eurovisão”, aponta João Carlos Callixto. Portugal 12 Pts, que terá apresentação esta sábado, na Bertrand do Vasco da Gama, em Lisboa, às 17h, com presença de Tozé Brito, e dia 14 na Fnac Chiado, com presença de Margarida Mercês de Mello, conta a história do Festival RTP da Canção, nascido em 1964 Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, e de todos os seus intérpretes, compositores e canções. Obra de João Carlos Callixto, radialista e investigador dedicado à música portuguesa, e do professor universitário Jorge Mangorrinha, docente de Turismo e que, paralelamente, tem já trabalho publicado sobre o Festival da Canção, alia a investigação, recorrendo à palavra impressa para mergulho mais profundo na época (responsabilidade de Mangorrinha), a uma vertente enciclopédica que dedica entradas a cada uma das centenas de canções que passaram pelo Festival da Canção ao longo dos anos (assegurada por Callixto).
Acompanhamos o desinteresse progressivo do meio musical a partir de meados dos anos 1980, “quando deixa de ser um reflexo directo da indústria musical”, assinala João Carlos Callixto, e seguimos o debate intenso que o Festival suscitava nas décadas de 1960 e 1970, que levava, por exemplo, David Mourão-Ferreira a sugerir em 1968, nas páginas da Flama, “a realização de uma ampla mesa redonda, com melodistas, compositores, poetas, críticos”, ainda que sem grande crença em que tal viesse a acontecer – no Brasil, a bossa nova fora criada a partir de uma “íntima colaboração entre homens da música e homens da palavra”, dizia, mas “aqui, a trabalhar cada um para o seu lado, ‘como Deus é servido’, havemos de ir longe…”.
Nos anos de ouro de festival, “tentávamos acima de tudo levar canções que tivessem significado em Portugal, orgulhando-nos das canções, mesmo que não se traduzissem em boas classificações, por serem escritas e interpretadas pelos grandes nomes da música portuguesa daquelas décadas”, assinala João Carlos Callixto. É significativo que a década de 1990 nunca seja encarada como época áurea do festival - faltou-lhe o impacto público e mediático, a discussão acalorada -, tendo em conta que é nela que Portugal consegue, até à vitória de Salvador Sobral, os seus melhores resultados de sempre na Eurovisão, com Dulce Pontes, Sara Tavares, Anabela e Lúcia Moniz e figurarem no top 10 das edições em que participaram. Mas, mesmo nos momentos em que ele parecia definhar irremediavelmente, “os fãs nunca o abandonaram”: “têm uma paixão ardente por ele”.
Salvador Sobral ganhou em 2017, mas os fãs já tinham um vencedor português. Eu quero ser tua, a canção que Suzy levou à Eurovisão em 2014, “é um verdadeiro fenómeno em qualquer festa de fãs da Eurovisão”. Palavra de Nuno Galopim.