Indústria alimentar volta a patrocinar congresso de nutricionistas

Fabricantes de alimentos inimigos de uma boa alimentação patrocinam congresso de nutricionistas que arranca esta quinta-feira, sob protesto de alguns profissionais que equiparam o evento a uma “feira alimentar”. Associação Portuguesa de Nutrição alega que, sem esse dinheiro, o congresso não era exequível.

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Nuno Ferreira Santos

Devem os nutricionistas participar ou promover eventos patrocinados por companhias que produzem alimentos nocivos para a saúde? A controvérsia não é nova e volta a colocar-se por causa do XVII Congresso de Nutrição e Alimentação, organizado pela Associação Portuguesa de Nutrição (APN), entre cujos patrocinadores surgem empresas como a Coca-Cola Company e a McDonald’s.

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Devem os nutricionistas participar ou promover eventos patrocinados por companhias que produzem alimentos nocivos para a saúde? A controvérsia não é nova e volta a colocar-se por causa do XVII Congresso de Nutrição e Alimentação, organizado pela Associação Portuguesa de Nutrição (APN), entre cujos patrocinadores surgem empresas como a Coca-Cola Company e a McDonald’s.

Com arranque marcado para esta quinta-feira, o congresso é organizado pela APN e inclui iniciativas como um simpósio em que o gestor do departamento de qualidade da McDonald’s Portugal, André Santos, se propõe falar do compromisso da marca com a qualidade nutricional dos seus produtos. Esta proximidade com a indústria alimentar já tinha gerado desconforto em edições anteriores do congresso. “Existe uma guerra dos nutricionistas contra os alimentos processados, foi, aliás, aplicada uma taxa ao açúcar, e, ao mesmo tempo, estabelecem-se parcerias com marcas que produzem alimentos prejudiciais à população, dando-lhes palco para que propagandeiem os seus produtos que são responsáveis por muitas doenças crónicas!?”, indignou-se ao PÚBLICO um nutricionista que preferiu não ser identificado.

Numa altura em que os alimentos processados, com níveis excessivos de sal, açúcares e gorduras saturadas, são o grande inimigo da saúde, “os nutricionistas e os estudantes de nutrição vão ao congresso à procura de informações e acções que promovam a alimentação saudável”. Na prática, acabam por ser confrontados com “marcas que comercializam alimentos processados, suplementos e produtos drenantes”.

Acresce que, nos espaços dedicados à exibição de produtos, estas marcas “promovem tômbolas em que recolhem os dados das pessoas que depois bombardeiam com marketing”. “Parece uma feira alimentar mais do que um congresso de nutrição. As pessoas saem de lá com sacos cheios de sopas instantâneas, iogurtes, refrigerantes, gelados. É uma espécie de hipermercado”, conclui o nutricionista, para apontar o dedo ao que diz ser a inacção da Ordem dos Nutricionistas: “Se um nutricionista aparecer na televisão a dizer que determinado drenante realmente emagrece, a Ordem é capaz de lhe cassar a licença. Como é que a mesma Ordem não actua quando há colegas a organizar congressos onde abrem a porta à indústria alimentar que constitui uma ameaça à saúde pública?”.

“Se algum nutricionista profere alguma bênção em relação a determinada matéria falaciosa, a Ordem poderá accionar o seu poder disciplinar, mas o congresso tem legitimidade para funcionar com patrocínios, como acontece na maior parte dos congressos da área da Saúde”, reage a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento, dizendo acreditar que no congresso desta quinta e sexta-feira “tudo se passará com isenção e rigor”, isto é, com a devida separação entre o espaço comercial, onde as empresas publicitam os seus produtos, e a discussão técnica e científica. De resto, conclui a bastonária a partir da sua experiência como participante em congressos anteriores, “quem sai com as sacas não são nutricionistas nem outros profissionais de saúde, mas os estudantes”.

Num cenário ideal, estes congressos deveriam poder realizar-se sem recurso a este tipo de patrocínios. “O congresso da Ordem dos Nutricionistas”, lembra Alexandra Bento, “reuniu para cima de mil congressistas, no ano passado, e foi isento de patrocínios, isto é, viveu apenas do valor de inscrição de cada participante”. “Entendemos que não podia ser de outra maneira, mas cabe a cada um criar as suas regras de conduta”, descarta.

“Tem um cariz comercial”

Ao PÚBLICO, a presidente da APN, Célia Craveiro, confirma que o congresso “tem um cariz comercial” mas que o mesmo em nada interfere com “a parte científica". “São essas parcerias que permitem fazer um congresso internacional que facilita o acesso à ciência”, declara, negando qualquer conflito de interesses, até porque “a equipa organizadora do congresso é diferente da equipa científica”. Quanto ao simpósio da McDonald’s, Alice Craveiro diz acreditar que “será interessante, porque nada tem a ver com os produtos e a sua venda”.

A presidente da APN defende que “os profissionais de saúde e a indústria alimentar devem trabalhar em conjunto, numa lógica de procura de consensos e não numa lógica de exclusão”. “Mais do que questionar o que as pessoas levam para casa nos sacos, deviam ver a dinâmica do congresso”, sugere, dizendo-se segura que os nutricionistas “sabem distinguir o bom e o mau no portfólio de produtos que lhes é apresentado”.

O director do programa alimentar da Direcção-Geral de Saúde, Pedro Graça, que integra a comissão científica do congresso, considera, por seu turno, que a APN tem vindo a fazer um esforço de aumento da transparência da relação com o sector alimentar”. “As pessoas sabem quem patrocina e como se faz o patrocínio”, sublinha, num raciocínio que pressupõe “uma total blindagem da gestão científica do congresso à intromissão da indústria alimentar”. De resto, num mundo poroso, em que alimentação e indústria alimentar se misturam e em que, por vezes, os “profissionais têm que recomendar marcas, porque não podem simplesmente mandar as pessoas ao supermercado comprar proteínas”, poderá fazer sentido que os nutricionistas possam saber que determinada marca está a colocar no mercado um produto com menos açúcar".

Quanto aos produtos que podem ou não ter cabimento numa iniciativa deste género, Pedro Graça defende que o tema, porque complexo, faça parte de um código de conduta para o sector. “É centralíssimo que isso se faça. Ao contrário dos médicos ou dos enfermeiros, os nutricionistas são uma profissão jovem, para cujo prestígio se começa a impor esta separação clara entre as questões médicas e as comerciais.” “Faz parte do amadurecimento da relação que a profissão tem que ter com a indústria alimentar”, conclui.