Irão: o terror da guerra
Nunca, desde a guerra do Iraque, foi tão importante a união da Europa, incluindo o Reino Unido. Em 2003, uma Europa unida teria travado Bush. Hoje, face ao nacionalismo brutal de Trump, nada é seguro.
A decisão de Trump de abandonar o acordo nuclear com o Irão é uma violação grave e extremamente perigosa da ordem internacional. Deixa o Irão sem a principal justificação para abandonar o seu programa nuclear: a proteção multilateral contra um ataque americano.
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A decisão de Trump de abandonar o acordo nuclear com o Irão é uma violação grave e extremamente perigosa da ordem internacional. Deixa o Irão sem a principal justificação para abandonar o seu programa nuclear: a proteção multilateral contra um ataque americano.
Sob a liderança reformadora de Hassan Rohani, o Irão aceitou suspender o seu programa nuclear, vencendo a oposição dos guardas revolucionários, a troco do fim das sanções, um poderoso argumento interno, mas sobretudo tendo em mente a diminuição da probabilidade de um ataque militar norte-americano. Só neste século, os EUA invadiram dois países vizinhos: o Iraque, a Ocidente, e o Afeganistão, a Oriente. Antes disso, o país tinha sido invadido pelo Iraque, numa guerra de oito anos que provocou cerca de um milhão de mortos. Os ocidentais hipnotizados pela guerra contra o terror, esqueceram o terror das verdadeiras guerras, não é assim no Médio Oriente.
A vontade do Irão de se dotar de armas nucleares era justificada do ponto de vista estratégico, antes de tudo, pela necessidade de dissuadir uma invasão americana. Contudo um Irão nuclear seria um golpe profundo no Tratado de Não Proliferação Nuclear, e impulsionaria outros – pelo menos a Arábia Saudita – a seguir o mesmo caminho.
À preocupação com a proliferação nuclear juntava-se com a crescente influência e ativismo militar do Irão na região. A destruição do poder anti-iraniano de Saddam Hussein, em 2003, aumentou substancialmente a influência de Teerão: o Iraque está hoje nas mãos das correntes políticas do xiismo pró-iraniano e a ajuda iraniana possibilitou a reconquista de Mossul ao Daesh; a intervenção militar iraniana tem sido decisiva para manter Assad no poder em Damasco; no Líbano, o Hezbollah, grande vencedor das recentes eleições, tem exército próprio e também intervém na Síria; e no Iémen, os rebeldes houthis têm o apoio de Teerão. Um Irão nuclear sentiria o seu território “santuarizado”, o que aumentaria as suas ambições regionais.
A Coreia do Norte conseguiu sentar os Estados Unidos à mesa das negociações dotando-se da arma nuclear, o que facilita o argumento dos que no Irão querem retomar o programa nuclear. Simultaneamente, a posição americana descredibiliza futuros acordos assinados pelos EUA, incluindo com a Coreia.
Todas estas razões sustentam a importância do acordo nuclear com o Irão, negociado durante 12 anos, e que, segundo os próprios serviços de informação de Trump, tem sido cumprido.
Mas se é assim, o que justifica a decisão de Trump? A resposta simples é que a Casa Branca está ocupada por um aventureiro perigoso, que não acredita em acordos multilaterais e que olha para o Irão, parte do “eixo do mal”, com as mesmas lentes do seu conselheiro Bolton, que advoga a mudança do regime iraniano pela força. A ideologia anti-islâmica de Trump e da extrema-direita americana pesou certamente na decisão. Mas conta também, e fortemente, a insistência com que os dois únicos aliados que lhe restam – Netanyahu e o poder fundamentalista saudita sunita – lhe pedem para embarcar numa aventura militar contra o Irão. Os ataques israelitas contra posições iranianas na Síria, nas vésperas da decisão de Trump, foram provocações a que o Irão não tinha respondido. Para os iranianos, tratava-se de não dar argumentos a Trump para romper o acordo; agora, como se viu, o incentivo para essa contenção é menor.
Creio, no entanto, que o que faz correr Trump é, antes de tudo, o medo de não ser reeleito e que os republicanos percam a maioria no Congresso nas eleições mid-term, o que poderá levar à abertura de um processo de impeachment. Todos os presidentes americanos sabem como a guerra congrega o apoio popular em torno da Casa Branca.
O que podem fazer os europeus? Pouco e muito. Pouco porque a sua capacidade para travar Trump é reduzida, como se viu no fracasso das tentativas da França, Alemanha e Reino Unido, signatários do tratado, para salvar o acordo. E já se viu que não é com pancadinhas nas costas que se normaliza Trump.
Mas podem muito – convencendo o Irão de que vale manter o tratado, mesmo sem os EUA. Não é fácil, pois não têm garantias de segurança para dar, mas podem trabalhar noutra vertente do acordo que interessa a Teerão, apoiando o seu progresso económico. Para isso, terão que se manter unidos e resistir à pressão que Trump faz sobre as empresas europeias, que ameaça com sanções. Neste domínio a posição do Reino Unido é crucial, e a condenação clara do governo May à decisão americana é uma ótima notícia. Mais, é crucial que os europeus não esqueçam que têm muitos aliados na América.
Nunca, desde a guerra do Iraque, foi tão importante a união da Europa, incluindo o Reino Unido. Em 2003, uma Europa unida teria travado Bush. Hoje, face ao nacionalismo brutal de Trump, nada é seguro. Cabe aos europeus demonstrar que podem defender a ordem multilateral e a paz, mesmo que isso implique correr o risco de uma rutura, temporária, dos laços transatlânticos.