Uma família debaixo do olho da PIDE e o que fazer com ela
Luz Obscura, de Susana de Sousa Dias, é um retrato de três infâncias que o salazarismo forçou à clandestinidade – um documentário em que a grande questão está algures entre o que se mostra e o que se esconde naquilo que não se mostra.
Susana de Sousa Dias recebe-nos em sua casa pouco depois de regressar do festival francês Cinéma du Réel, onde revelou a sua terceira longa, Luz Obscura, e pouco antes de o filme ser estreado entre nós na competição do IndieLisboa de 2017, há precisamente um ano. O seu novo documentário, que só agora chega às salas, prolonga o trabalho de memória que vem dedicando ao regime salazarista e às pessoas que este apanhou nas suas redes, um trabalho que iniciou com Natureza Morta (2005) e que prolongou no assombroso 48 (2009). O novo filme centra-se na infância de Isabel, Rui e Álvaro Pato, filhos do dirigente comunista Octávio Pato (1925-1999), que cresceram na clandestinidade e até durante algum tempo na prisão.
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Susana de Sousa Dias recebe-nos em sua casa pouco depois de regressar do festival francês Cinéma du Réel, onde revelou a sua terceira longa, Luz Obscura, e pouco antes de o filme ser estreado entre nós na competição do IndieLisboa de 2017, há precisamente um ano. O seu novo documentário, que só agora chega às salas, prolonga o trabalho de memória que vem dedicando ao regime salazarista e às pessoas que este apanhou nas suas redes, um trabalho que iniciou com Natureza Morta (2005) e que prolongou no assombroso 48 (2009). O novo filme centra-se na infância de Isabel, Rui e Álvaro Pato, filhos do dirigente comunista Octávio Pato (1925-1999), que cresceram na clandestinidade e até durante algum tempo na prisão.
É um projecto que a realizadora transportava consigo há quase 20 anos: nasceu ao mesmo tempo que Natureza Morta, quando Susana de Sousa Dias encontrou uma foto de Rui Pato nos arquivos da PIDE, e está também ligado a 48, documentário em que Álvaro Pato era uma das figuras presentes. Mas Susana de Sousa Dias confessa que, apesar de este projecto anteceder a sua restante obra, “não conseguiria sequer ter feito este filme sem ter feito os outros”, como se este só pudesse existir por contraste com os anteriores. A própria realizadora aponta que, nesta trilogia documental nascida a partir dos arquivos da PIDE, este é o único filme que “não tem 25 de Abril” – pois é do tempo antes da Revolução que se fala.
Agora que este filme em que a realizadora tenta trabalhar “uma ideia de clausura” chega finalmente às salas, é a oportunidade de regressar a uma conversa viva que, mesmo um ano depois, continua a revelar pistas fascinantes sobre a ética e o pensamento que norteiam o trabalho desta documentarista.
Neste filme estamos a falar de crianças – adultos que olham hoje para as crianças que foram e para o modo como viveram a infância.
A ideia era fazer um filme sobre os filhos, como eles viam as lutas dos pais, as vivências… Havia até vários núcleos familiares. Mas à medida que comecei a montar, e foi para mim das coisas mais impressionantes, era como se os mortos começassem todos a erguer-se e a revelar-se. Enquanto nos outros filmes se fala das experiências que as pessoas viveram e de como as pensam na actualidade, aqui há de facto um caminho que se faz, e é muito estranho; são adultos, mas por vezes é a voz da criança que vem ao de cima.
Uma dimensão quase de terapia?
Sim, sim, senti muito isso durante as próprias conversas. Surpreendeu-me eles terem as memórias à flor da pele – não era nada como entrevistar os pais, ou as pessoas que entrevistei para o 48. Como é que se lida com material destes? Eles falam das experiências, de repente há a criança que emerge – o que é muito estranho também –, e depois é convocar os outros que já morreram, que são aqueles que aparecem. É uma confrontação da memória oficial com a memória íntima. Se vamos aos arquivos, temos aquela imagem do tio Abel, mas quem é o tio Abel? E ainda há um ir para trás, àquela avó, àquela mulher, às pessoas que não existem na história, o que para mim é muito importante. Isto é uma espécie de arqueologia da memória – a pessoa tem de escavar a própria memória para deixar um traço daquelas mulheres que foram importantes.
Mas há outra questão que me interessou do ponto de vista cinematográfico. É que no 48 eu resolvo o problema da fractura passado/presente não mostrando as pessoas. Quando eu decido mostrar as pessoas, como é que resolvo esse problema? Tirá-las para mim não foi uma opção, nunca. O Max Ophüls falava do “documento humano” quando filmava as pessoas, achei essa expressão muito interessante. Para mim, era um imperativo mostrar estas pessoas. Seria muito mais fácil tirá-las e fazer tudo com imagens de arquivo, outra vez. E isso para mim também era aliciante: como é que posso resolver algo sem ser de forma mais simples? Em Paris houve um jornalista que me disse que achava que era um tabu aparecerem pessoas nos meus filmes. Mas só não aparecem quando isso faz parte da própria proposta. Aqui é o contrário. Mas foi uma questão em que pensei muito no 48, uma questão ética: era justo ou não mostrar as pessoas? E depois percebi que não era preciso. Criava até problemas, até por uma questão política; queria confrontar o espectador com o olhar do prisioneiro político, não com o olhar do ex-prisioneiro político que é a pessoa que fala hoje. Ao tirar a pessoa, cumpro o desígnio do filme.
Há um grande pudor no modo como filma esta história, e sempre que aparecem os rostos é como se a câmara fosse uma intrusa.
Isso é muito engraçado, porque senti-me muito intrusa quando estava a filmar. Sobretudo a Isabel, porque ela não queria falar. Falou porque sentia que tinha de transmitir estas informações, de passar o testemunho. Foi, de todas as entrevistas que fiz, aquela em que me senti mais intrusa. “Eu tenho direito de fazer isto?” Tenho sempre de encontrar uma forma que esteja de acordo com o conteúdo que estou a trabalhar, e é sempre complicado. Não estou a seguir um modelo… Há modelos que não quero utilizar.
Como é que chega a esta forma?
Estava plenamente convencida de que ao fim de uma semana tinha o filme pronto e depois foi altamente complexo! Esta é uma história muito difícil de desbastar. Tirei as balizas temporais para não cair no filme narrativo, tive de organizar tudo para perceber como é que as coisas chegavam, e depois surgiu a questão da imagem. O que é que eu mostro? Há necessidade de mostrar alguma coisa? Que imagens é que eu ponho? Por que é que eu vou pôr uma imagem? A grande questão aqui foi essa. Foi aí que o filme se começou a pensar: não ia mostrar como é que era esta família, é um filme que está a pensar como é que a PIDE agia sobre esta família. A partir daí, retiro tudo o que é fotografia familiar e só utilizo fotografias da PIDE – as fotografias de família que aparecem foram tiradas pela PIDE. Até para evitar essas contaminações, foi o trabalho que encontrei para dividir esse caminho memória íntima/memória oficial.