O PS no pântano de José Sócrates
O PS saiu do armário e aceitou comentar na política o que sempre disse ser um tabu enclausurado nos dogmas da justiça porque o seu silêncio se tornou ensurdecedor.
O que espanta não é o PS e as suas altas individualidades terem decidido expressar agora os seus estados de alma sobre as acusações que impendem sobre José Sócrates ou Manuel Pinho; o que surpreende é o facto de se terem conseguido manter em silêncio durante mais de mil dias. Perceber o que levou o líder parlamentar, destacados deputados ou o próprio primeiro-ministro a sair do casulo e virem para a praça dar conta do seu desconforto, da sua tristeza, raiva ou até revolta com as acusações que pairam sobre José Sócrates ou as suspeitas que envolvem Manuel Pinho implica por isso muito mais do que um mero julgamento político: implica uma análise sobre as causas que permitiram ao PS viver todo este tempo a coberto de uma óbvia cortina de falsidade e irrealismo. Nessa análise, ninguém sai bem na fotografia. Nem o jornalismo, nem a política. A vantagem dos pântanos éticos ou das suspeitas criminais em democracia é que, às vezes, têm de ser drenados. É o que está a acontecer.
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O que espanta não é o PS e as suas altas individualidades terem decidido expressar agora os seus estados de alma sobre as acusações que impendem sobre José Sócrates ou Manuel Pinho; o que surpreende é o facto de se terem conseguido manter em silêncio durante mais de mil dias. Perceber o que levou o líder parlamentar, destacados deputados ou o próprio primeiro-ministro a sair do casulo e virem para a praça dar conta do seu desconforto, da sua tristeza, raiva ou até revolta com as acusações que pairam sobre José Sócrates ou as suspeitas que envolvem Manuel Pinho implica por isso muito mais do que um mero julgamento político: implica uma análise sobre as causas que permitiram ao PS viver todo este tempo a coberto de uma óbvia cortina de falsidade e irrealismo. Nessa análise, ninguém sai bem na fotografia. Nem o jornalismo, nem a política. A vantagem dos pântanos éticos ou das suspeitas criminais em democracia é que, às vezes, têm de ser drenados. É o que está a acontecer.
O PS saiu do armário e aceitou comentar na política o que sempre disse ser um tabu enclausurado nos dogmas da justiça porque o seu silêncio se tornou ensurdecedor. As teses sobre a necessidade de o partido fazer autocrítica, defendidas por militantes como Ana Gomes, não prevaleceram na sequência de uma escolha consciente. Não foi a constatação racional de que era necessário desarmar o anátema da corrupção a tempo de evitar uma contaminação do próximo congresso que forçou uma mudança de estratégia. Depois de a SIC ter mostrado ao grande público a natureza e a gravidade da acusação a Sócrates, depois de se ter instalado na opinião pública a sensação de que, para lá de eventuais crimes, o PS liderou o país através de um mitómano habituado a modos de vida muito pouco socialistas, ficou impossível continuar a chutar para canto. Mas, mesmo que o PS estivesse tentado a manter o seu silêncio cauteloso e hipócrita, a revelação de que Manuel Pinho recebeu uma “avença” de Ricardo Salgado acabou com todas as suas veleidades.
O problema desse governo socialista deixou então de estar apenas inquinado pela megalomania ou até pelo suposto perfume ácido da corrupção em torno de um homem. A perfídia atribuída a Manuel Pinho deu origem a uma suspeita sistémica sobre esse mesmo governo. Deixou de se tratar de uma vergonha protagonizada por uma pessoa. Havia afinal mais gente naquele Conselho de Ministros capaz de vender a alma ao diabo. Manuel Pinho tornou viável a suspeita de que o Governo de Sócrates estava excessivamente exposto ao relativismo ético ou até à própria venalidade. Um suspeito era uma vergonha. Dois dão corpo a um escândalo.
Mesmo que insistisse em manter o seu interessado respeito pela separação dos poderes (“à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política”), António Costa e os seus pares não podiam continuar sem expressar a sua “revolta” ou a sua “vergonha” para com um ex-primeiro-ministro das suas cores que levava uma vida sumptuária à custa da alegada generosidade de um amigo. Nem podiam ficar calados quando um dos seus antigos ministros recebia todos os meses um cheque chorudo de um banqueiro pérfido depois de ter jurado servir a República e o país em nome do PS. O PS falou porque foi obrigado a falar. Os seus responsáveis disseram o que disseram não tanto por convicção (para isso há que ouvir Ana Gomes ou Manuel Alegre) mas porque não tinham alternativa. Daí a hipócrita e patética declaração da semana passada de Carlos César, que para justificar a sua “revolta” teve necessidade de dizer que o Governo Sócrates foi bom e que os outros partidos têm telhados de vidro. Têm sim senhor, de Dias Loureiro a Paulo Portas, do escândalo dos submarinos a esse monumento ao roubo da propriedade pública que foi o caso Portucale. Mas não é disso que se está a falar agora.
Não tinha de ser assim. José Sócrates era mesmo antes da acusação da Operação Marquês um activo tóxico para a credibilidade do PS. No seu lamentável currículo estavam já inscritas suspeitas como a do aterro da Cova da Beira ou do licenciamento do Freeport e provas acabadas do seu desprezo pela ética em histórias sórdidas como a da sua licenciatura ou a assinatura duvidosa de projectos de construção – neste caso, mais do que uma ilicitude de natureza penal, o que estava em causa era o horror de sabermos que o primeiro-ministro de Portugal tinha aposto a sua assinatura naquelas aberrações urbanísticas. Consegue-se perceber que António Costa ou os líderes do PS hesitassem em condenar alguém indiciado ou acusado – ao contrário do que apregoam por aí os justiceiros que há muito condenaram José Sócrates usando a luz da sua presciência ou o brilho da sua capacidade de interpretação dos factos. Mas não se consegue perceber que o PS tenha demorado tanto tempo para se dizer envergonhado com essa figura sinistra que em tempos nos governou.
Se houver alguma consequência para o PS no futuro próximo, ela virá da factura a pagar por esse cinismo corporativo. Ou ainda da suspeita, legítima, que levará muitos cidadãos a duvidar dos membros do Governo de José Sócrates que dizem que não sabiam de nada. Nada nos deve levar a suspeitar que eles sabiam de facto. Mas de uma dura e legítima crítica nem eles, nem António Costa se livram: se nada viram nem suspeitaram, ou foram ingénuos, ou crédulos ou demasiado cegos pela obediência ao partido para não se aperceberem o que estava a acontecer. Terem acreditado que a vida faustosa de Sócrates era paga com dinheiro da família expõe protagonistas como Augusto Santos Silva ou Vieira da Silva pelo menos a uma crítica evidente: durante a maioria de Sócrates nem foram exigentes, nem cautelosos na prossecução do interesse público.
Serão estes constrangimentos capazes de perturbar a caminhada de António Costa e do PS em direcção à vitória mais que expectável nas próximas legislativas? Não. A menos que surjam factos novos, os socialistas acabarão por conseguir demarcar-se de Sócrates e de Pinho e seguir em frente. A memória na política vale menos do que o indicador do consumo privado e no final do dia acabará por vingar. Sobra por isso uma única consequência positiva em todo este drama: o PS caiu na real e ao fazê-lo deu sentido a um debate obrigatório sobre um governo recente cujo líder é suspeito de protagonizar o mais repugnante caso de corrupção da era democrática. Sim, ele continua inocente do ponto de vista judicial: mas na política não é necessário apenas combater os criminosos. É também necessário sair do murmúrio e dizer sem equívocos que houve um primeiro-ministro cujos comportamentos éticos enlamearam Portugal. Por muito que custe ao PS, está na hora de tirar o lixo debaixo do tapete.