O Dom Quixote de Terry Gilliam vai mesmo passar no Festival de Cannes
O Homem Que Matou Dom Quixote encerrará o festival, apesar da acção de interdição de Paulo Branco. O realizador está "aliviado", mas o produtor português diz que a decisão é "a seu favor".
O Homem Que Matou Dom Quixote vai mesmo encerrar o 71.º Festival de Cannes, decidiu esta quarta-feira um tribunal em Paris. O realizador Terry Gilliam está "aliviado" por ver confirmada a estreia do seu filme depois de uma acção de interdição do produtor português Paulo Branco, diz ao PÚBLICO uma das co-produtoras, a também portuguesa Pandora Cunha Telles, da Ukbar Filmes, que considera a decisão "recompensadora". Paulo Branco, porém, contrapõe ao PÚBLICO que esta decisão obriga o festival a reconhecer os seus direitos sobre a obra.
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O Homem Que Matou Dom Quixote vai mesmo encerrar o 71.º Festival de Cannes, decidiu esta quarta-feira um tribunal em Paris. O realizador Terry Gilliam está "aliviado" por ver confirmada a estreia do seu filme depois de uma acção de interdição do produtor português Paulo Branco, diz ao PÚBLICO uma das co-produtoras, a também portuguesa Pandora Cunha Telles, da Ukbar Filmes, que considera a decisão "recompensadora". Paulo Branco, porém, contrapõe ao PÚBLICO que esta decisão obriga o festival a reconhecer os seus direitos sobre a obra.
A decisão de fazer de O Homem Que Matou Dom Quixote o encerramento de Cannes tinha sido anunciada a 19 de Abril pela organização do evento, que queria assim selar a sua 71.ª edição com o filme que Terry Gilliam tentava fazer há duas décadas e que tem já uma aura especial pela sua atribulada história. No final do mês, Paulo Branco interpôs uma acção de interdição para impedir que O Homem Que Matou Dom Quixote se estreasse na Croisette, por considerar que os direitos sobre o guião e de autor-realizador são seus – isto apesar de Gilliam ter rompido com o produtor em Agosto de 2016, alegando que este não tinha verbas para fazer o filme, e que ao tentar reduzir o seu orçamento estava a condicioná-lo artisticamente. Sem Paulo Branco e sua equipa, as filmagens acabaram por ter lugar na Primavera de 2017, enquanto uma batalha legal decorria em fundo.
Paulo Branco diz agora que a decisão do tribunal parisiense desta quarta-feira corrobora que ele é o detentor dos direitos sobre o filme e frisa que a decisão autoriza uma exibição excepcional em Cannes mas impõe "que a sua passagem deve ter obrigatoriamente um comunicado a confirmar que os direitos do filme pertencem à Alfama Films e a Paulo Branco" a antecedê-la. "Não tenho nenhuma informação sobre isso", responde Pandora Cunha Telles, confrontada pelo PÚBLICO com a afirmação de Paulo Branco. Já na quinta-feira, a Ukbar esclarece em comunicado que a decisão sobre a exibição em Cannes "não confere ou determina qualquer direito de propiedade e/ou exploração à Alfama Films. Segundo o juiz francês a medida solicitada pelo Sr. Branco era constitutiva de um grave ataque à liberdade de expressão".
A agência AFP, que cita directamente a decisão judicial, detalha que a exibição do filme deve ser antecedida da mensagem: "A projecção do filme The Man Who Killed Don Quixote nesta sessão de encerramento do festival internacional de cinema não prejudica de forma alguma os direitos reivindicados [pela Alfama Films], que são alvo de processos judiciais em curso." A Ukbar cita, por seu turno, a mesma decisão, com mais detalhe: "A projeção do filme The man who killed Don Quixote (...) em nada prejudica os direitos reivindicados pela sociedade Alfama Films e o Senhor Paulo Branco sobre a obra ao Senhor Terry Gilliam e aos produtores mencionados no genérico, que são objecto de procedimentos legais em curso."
A co-produtora portuguesa (o filme é uma co-produção da espanhola Tornasol, da belga Entre Chien et Loup, da francesa Kinology e da Ukbar Filmes) frisa que se trata de "um filme absolutamente incrível" cuja rodagem em Portugal (nomeadamente no Convento de Cristo, em Tomar) "trouxe um investimento de mais de um milhão de euros e deu emprego a centenas de pessoas". No Twitter, a distribuidora da obra, a francesa Océan Films, escreveu entretanto: "O Festival de Cannes quebrou o feitiço. O Homem Que Matou Dom Quixote entra na história do cinema". No mesmo espírito, o Festival de Cannes acrescentou na mesma rede social que "Terry Gilliam estará lá", na estreia do filme, pedindo: "Façamos desta vitória uma grande festa". O realizador que tinha dito que morreria antes de deixar morrer este filme, e que terá estado hospitalizado no último fim-de-semana em Londres, mandou uma fotografia bem humorada à organização: "Ainda não estou morto. Vou a Cannes."
Entre o desgaste e o desastre
O Homem Que Matou Dom Quixote é o filme que Terry Gilliam tenta fazer desde o final dos anos 1990; desde então, houve vários elencos, várias tentativas de filmagem e vários guiões. Terminado em 2017 (o trailer foi divulgado há um mês), é protagonizado por Adam Driver, Jonathan Pryce e Olga Kurylenko – e pela portuguesa Joana Ribeiro, que estará em Cannes nos próximos dias 17 e 18, em vésperas da sessão de encerramento, numa série de encontros com a imprensa que servirão para promover esta produção orçamentada em 16 milhões de euros.
O diferendo legal entre Paulo Branco e aqueles a quem chama os "pretensos produtores" do filme tem condicionado a estreia de O Homem Que Matou Dom Quixote que, argumenta o produtor, não deve obter visto de exploração para chegar aos cinemas franceses no próximo dia 19, como estava previsto, para coincidir com o fecho de Cannes. O veredicto desta quarta-feira "é sábio" porque permite a passagem "excepcional em Cannes e mede as consequências para todos os interessados", defende.
Desse veredicto consta a "confirmação de que todas as decisões da justiça até agora, sobre o contrato de [direitos de] realizador ou argumento, são válidas", ou seja, continua Paulo Branco, que esses direitos lhe pertencem, conforme apontaram decisões judiciais anteriores sobre o prolongamento do prazo de um contrato de direitos de opção sobre o guião da obra (definitivamente apreciada em Londres) e a rejeição da confirmação da rescisão do contrato de Terry Gilliam com Paulo Branco (ainda aguardando recurso em Paris). Paulo Branco reitera que sem um acordo e sem uma indemnização à Alfama Films, cujo montante não quantifica, o filme não pode estrear-se comercialmente.
Mas para Pandora Cunha Telles, que ainda não tinha falado com a Océan sobre os planos da distribuidora para estreia em sala, "o filme estreará dia 19". O Centre National du Cinéma et de l'Image Animée, a agência competente do Ministério da Cultura francês, aguardava a deliberação sobre Cannes para emitir o visto de exploração, obrigatório para a estreia comercial de um filme em França, e ainda não é conhecida a sua decisão.
Numa coisa as partes parecem concordar: este processo afastou da discussão o próprio filme enquanto trabalho artístico. Tem sido "extremamente desgastante", limitando a visibilidade "pública do investimento pessoal e financeiro de todos os envolvidos", diz a responsável da Ukbar.
"A situação criada por Cannes pode criar um segundo desastre industrial para o filme", avisa por seu turno Paulo Branco, referindo-se à história acidentada de O Homem Que Matou Dom Quixote. Para o produtor, as honras de encerramento em Cannes vão "servir o ego de Thierry Frémaux e o ego de Terry Gilliam", e esta pode ser uma "situação desastrosa porque ninguém pode estrear o filme sem haver uma indemnização". Alude a potenciais problemas financeiros do filme, numa altura em que a Amazon Studios terá abandonado o projecto, e, em declarações à Lusa, chega mesmo a ameaçar o festival: "Serão analisados os danos causados por esta projeção e Cannes será responsável desses danos."
A Amazon era a distribuidora do filme nos EUA e segundo a imprensa especializada norte-americana ter-se-á afastado esta quarta-feira do projecto. Estava com o filme desde o início, mas segundo documentos revelados pelo diário francês Le Monde há um mês tinha-se retirado de cena na véspera do anúncio público de que a Alfama Films e Terry Gilliam iriam mesmo fazer O Homem Que Matou Dom Quixote – um anúncio feito precisamente no Festival de Cannes em 2016. Na altura estavam em causa 2,5 milhões de euros de financiamento. Segundo documentos a que o PÚBLICO teve acesso, o acordo do gigante tecnológico manteve-se activo com a Tornasol, a Entre Chien et Loup e a Kinology (que com a portuguesa Ukbar Filmes assumiram a produção do filme desde o final de 2016), mas a Amazon temia ter de recuar dado o litígio em curso entre Branco e Gilliam em torno do processo legal em curso em Paris.
No final de Agosto de 2016, Terry Gilliam informou que dava por terminada a sua relação contratual com a Alfama Films e com Paulo Branco. Meses depois essa situação passava para a alçada da justiça. Em Londres, o tribunal deliberou por duas vezes sobre uma extensão de um prazo contratual, e fê-lo a favor de Paulo Branco, o que o levou a concluir que os direitos sobre o argumento estão ainda com a Alfama Films. Os actuais produtores dizem que estes já lhes foram cedidos legalmente, e que na decisão londrina “não existe qualquer reconhecimento dos direitos de Branco”, como escreveram num comunicado a 30 de Abril, acrescentando então que nunca foram feitos os pagamentos que selariam esses contratos de cedência de direitos. Aguarda-se agora que a 15 de Junho um tribunal superior de Paris se pronuncie sobre o contrato de direitos de autor-realizador que Gilliam e o seu advogado consideram actualmente “rescindido”, posição que uma primeira decisão da justiça francesa, há um ano, não confirmou.