Barrigas de aluguer: o Constitucional está de volta!
O recente Acórdão n.º 225/2018, sobre as denominadas “barrigas de aluguer”, é um valente puxão de orelhas ao legislador parlamentar.
Depois de ter estado na ribalta nos anos mais duros da crise económico-financeira ? nem sempre pelas melhores razões ?, o Tribunal Constitucional andou nos últimos tempos algo desaparecido do espaço mediático. Se era para continuar a policiar as políticas económicas dos governos em exercício, ainda bem que assim foi.
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Depois de ter estado na ribalta nos anos mais duros da crise económico-financeira ? nem sempre pelas melhores razões ?, o Tribunal Constitucional andou nos últimos tempos algo desaparecido do espaço mediático. Se era para continuar a policiar as políticas económicas dos governos em exercício, ainda bem que assim foi.
O Constitucional está porém de volta e em força. Desta vez, num terreno que é verdadeiramente o seu: a defesa da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Se vai ou não continuar em cena dependerá, certamente, do nível de tradução legislativa das agendas ideológicas ditas fraturantes: mudança de género; eutanásia, etc.
Seja como for, o recente Acórdão n.º 225/2018, sobre as denominadas “barrigas de aluguer”, é um valente puxão de orelhas ao legislador parlamentar, que, nem depois de um primeiro veto político do Presidente, conseguiu (ou quis) produzir uma lei compatível com o primeiro de todos os princípios constitucionais: a dignidade da pessoa humana.
O Acórdão, exaustivamente fundamentado, com um notável rigor analítico e uma argumentação inteligente, chega a uma conclusão equilibrada: o legislador democrático tem direito a tomar as suas opções políticas de fundo sobre esta matéria eticamente controversa, mas, no regime que define, tem que zelar com um especialíssimo cuidado pela proteção da dignidade e dos direitos fundamentais de todos os intervenientes no processo. Acima de tudo, a denominada gestante de substituição; mas também as crianças nascidas por essa via; e, finalmente, os pais, previsíveis beneficiários da gravidez que desencadearam.
Os juízes do Palácio Ratton pronunciaram-se sobre várias questões, mas, no que toca à admissibilidade desta nova figura jurídica, talvez possa resumir-se a decisão da seguinte forma: à luz da Constituição, é admissível a “maternidade de substituição”, que é todavia uma realidade substancialmente diferente da simples “gestação de substituição” prevista pelo legislador; por sua vez, o modelo de “maternidade de substituição” que é constitucionalmente permitido aproxima-se muito, no que respeita ao seu momento culminante, do conhecido instituto da adoção, com a particularidade de aqui se tratar de uma “adoção programada”.
A pedra angular da decisão é a seguinte: a mulher, que gratuitamente empresta a sua barriga para gerar um filho de outrem, não é e não pode ser apenas uma “gestante”, porque “a mulher grávida altera a expressão genética de cada embrião”, porque a “gravidez é um fenómeno dinâmico e imprevisível” e porque no seu âmbito se “constitui uma relação biológica e potencialmente afetiva entre a grávida e o feto”.
Por isso, durante o processo a gestante é verdadeiramente mãe ? ou é também mãe, a par da mãe-beneficiária da gravidez em causa. O consentimento que ela presta no início, aquando do recurso às técnicas de procriação medidamente assistida ? o único que a lei previu ?, tem de manter-se atual até ao fim do processo, que não é sequer o parto. Em casos menos felizes, pode ser um aborto, dentro dos prazos (mais curtos ou mais longos) em que a lei admite a sua realização. Mas, na generalidade dos casos, será o momento de entregar a criança nascida aos beneficiários.
Segundo o Tribunal Constitucional, se o consentimento da gestante-mãe não for livremente revogável até esse momento dilemático da entrega do recém-nascido aos beneficiários, ela degrada-se num simples instrumento ao serviço de um projeto alheio, numa espécie de incubadora viva, em gritante violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
O Acórdão sublinha, a este respeito, que “o momento crítico do cumprimento da última obrigação do contrato” de gestação, num contexto em que tem de estar garantida a liberdade decisória da gestante-mãe, “é comparável ao consentimento para adoção”. Esta analogia não é de todo inocente: primeiro, porque nos casos normais de adoção o consentimento tem de ser prestado perante um juiz; segundo, porque a mãe não pode dar o seu consentimento formal para adoção antes de decorridas seis semanas após o parto; terceiro, porque a Constituição manda proteger o instituto da adoção e não se refere sequer à maternidade de substituição.
É evidente que, a partir daqui, quando a gestante-mãe pretender também ser mãe no plano jurídico ? revogando o seu consentimento a meio do percurso ou, sobretudo, recusando-se após o parto a entregar a criança à mãe-beneficiária ? surge um conflito positivo de projetos parentais que terá que ser decidido à luz do superior interesse da criança. O Tribunal refere-se, mesmo, a uma “avaliação casuística”, que só poderia ser feita por via judicial.
Este conflito é, contudo, mais aparente do que real: se a gestação de substituição não corresponde a priori a nenhum direito fundamental dos beneficiários, e considerando a “relevância constitutiva da relação intra-uterina”, como decretar contra a gestante-mãe a execução específica de uma obrigação (contratual) pessoalíssima e necessariamente assumida por esta de forma gratuita?
Em todo o caso, o legislador tem alguns problemas sérios para resolver, se quiser reconverter o regime (inconstitucional) da gestação de substituição num procedimento de maternidade de substituição e adoção programada compatível com a Lei Fundamental. Seria bom que seguisse as judiciosas considerações deixadas pelo Tribunal Constitucional ao longo da sua decisão.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico