Diante das fotografias, dentro do cinema
Com mais de 100 filmes, durante dois meses, 24 Imagens, Cinema e Fotografia vai mostrar as vidas cruzadas de duas artes do século XX que nunca se divorciaram. Um ciclo ambicioso e fascinante que começa na próxima segunda-feira, na Cinemateca Portuguesa.
“Parece que estou dentro de um filme americano”, diz William Klein, enquanto observa as suas provas fotográficas num breve momento da curta metragem Contacts (11, 19h; 18, 21h30). A frase, espontânea e ao mesmo tempo reflexiva, ganha um sentido particular no interior do ciclo que arranca segunda-feira na Cinemateca Portuguesa. Com 48 sessões, mais de 100 filmes, 24 Imagens, Cinema e Fotografia propõe, até Junho, uma viagem à história das relações entre a fotografia e o cinema, definindo e sobrepondo temas e questões, entre grupos distintos, não estanques, de obras. Concebido por Joana Ascensão e Maria João Madeira, o programa inclui filmes documentais, obras de ficção e cinema experimental numa vizinhança ruidosa e surpreendente. Basta atentar na recorrência de imagens da cidade e da infância, na aparição e reaparição de conceitos como os da memória ou do tempo, na presença transversal de cineastas. Acompanhar este ciclo implica aceitar os seus abismos, os seus jogos, os seus passos de dança. Entre o movimento e a sua suspensão, a verdade e a ficção, o real e a sua representação. Não será também esse o repto de Blow-Up – A História de um Fotógrafo (7, 15h30; 14, 18h30), de Michelangelo Antonioni – filme que inaugura o ciclo – quando coloca o espectador diante de uma fotografia, dentro de cinema?
Há vários anos que as duas programadoras discutiam a organização de um programa assim, mas só agora foi possível realizá-lo com a abrangência desejada. E depois de várias configurações, ao fim de meses de investigação e reflexão, ei-lo materializado numa selecção de títulos em que se incluem diversas obras inéditas, nunca antes vistas na Cinemateca.
“A ideia base partiu dos cruzamentos possíveis entre o cinema e a fotografia, duas artes e duas técnicas que têm profundas afinidades” recorda Joana Ascensão. “Tentámos pensar o programa em torno de vários eixos que se relacionam directamente com as questões levantadas pelos diálogos e as tensões entre ambas. A história da relação entre a fotografia e o cinema é marcada por afastamentos, aproximações, assume formatos diferentes ao longo do tempo”. Um dos momentos que marcam e determinam essa relação é questão do movimento. Se o cinema tem a capacidade de mobilizar as imagens fotográficas, a fotografia consegue efectuar uma paragem ou suspender o próprio ritmo do cinema. “Essa é uma questão essencial e está na base do programa, com os filmes cronofotográficos do Étienne-Jules Marey [11, 15h30; 15, 19h]. Não se trata de obras cinematográficos, mas fotográficas, a partir das quais se percebe o cinema. Daí integrar um dos eixos, a que demos o nome de O fluxo, o instante ”. Deste grupo, fazem parte filmes de Agnès Varda, László Moholy-Nagy, Max Olphus, Michael Snow, Man Ray, Hollis Frampton, Jean-Luc Godard, entre outros cineastas e artistas, e aquele que, pela sua natureza, não podia faltar, La Jetée, de Chis Marker (7, 19h; 15, 18h30). “É um filme charneira, feito de fotografias, como aliás O Dia de um Estivador Precário, de Hubert Fichte e Leonore Mau [exibidos nas mesmas sessões]. Foram realizados em 1966 e não abordam apenas a questão do movimento, mas, também, a memória, a narrativa, o tempo, o passado”.
Fascínio do movimento
Distantes dos “fotofilmes”, estão aquelas obras em que o movimento das imagens se interrompe apenas num “paralítico”, se suspende num instante, como acontece no final de 400 Golpes, de François Truffaut (9, 19h; 28, 15h) ou em Wavelength, de Michael Snow (Junho), filme que pode ser considerado um movimento em direcção a uma imagem fotográfica. Outra tipologia, considera a programadora, encontra-se nas propostas de Paul Sharits (Junho) e Rose Lowder (Junho), nomes do cinema experimental, que “trabalham a decomposição do cinema nas suas unidades mínimas”.
Embora definidos, os eixos não são estanques. Há obras que poderiam pertencer a outros grupos ou que pertencem a vários em simultâneo, ou que evidenciam parentescos, ligações com outras obras. 24 Imagens, Cinema e Fotografia é uma constelação que esconde outras constelações. Por exemplo, o maravilhoso Weegee’s New York (30, 15h30), do fotógrafo Weege, embora integrado em Géneros do Fotográfico podia fazer parte de Vestígios do Real, o pequeno filme de William Klein, Contacts, que pertence ao tema Álbuns fotográficos, não ficaria mal na galeria de Investigações Fotográficas ou, como sugere Joana Ascensão, La Jetée poderia perfeitamente ser um exemplo dos Álbuns fotográficos. Esta fluidez não coloca em causa a pertinência dos temas e das ideias mais genéricas. São estas, precisamente, que transportam o espectador entre as obras e os universos dos autores.
No grupo dos Álbuns fotográficos constam filmes de cineastas, muitos dos quais também fotógrafos, que usaram a fotografia para um regresso ao passado ou para rememorar um conjunto de experiências, desde viagens a experiências mais pessoais, da intimidade. A galeria é heterogénea, com Abbas Kiarostami – do qual se estreará o seu filme póstumo, 24 Frames (7, 21h30; 10, 15h30) – Daniel Blaufuks, Nan Goldin, Robert Frank, Raymond Depardon, David Perlov ou Stanley Kubrick, com Day of the Fight (25, 18h30; 29, 21h30), filme inspirado num trabalho fotográfico que o cineasta fizera para a revista Life. A vida, representada nas imagens das ruas da cidade e da infância, aparece como o grande assunto de Vestígios do Real, com obras das quais se destacam (dia 9, 15h30; e dia 14, 21h20) In the Street, de Janice Loeb, Helen Levitt, James Agee que Charlie Chaplin muito apreciava, Under the Brooklyn Bridge, de Rudy Burckhardt ou The Little Fugitive, de Ray Ashley, Morris Engel, Ruth Orkin que viria a influenciar a nouvelle vague, e em particular Truffaut na realização de 400 Golpes. “São filmes com uma forte tradição fotográfica, associados à fotografia de rua. O Rudy Burckhardt, o Weegee ou o Morris Engel trouxeram para as suas obras cinematográficas não apenas as temáticas e as narrativas das suas experiências na fotografia, mas também as formas e os meios dessas experiências, por exemplo câmaras mais leves, influenciando o cinema. Os anos 50 e 60 foram um período muito fértil ao nível do questionamento, da experimentação. O cinema moderno tem uma preponderância no ciclo, mas também o das vanguardas, o cinema experimental e dos primórdios. Lembro, a propósito, que em Vestígios do Real vamos mostrar obras dos Lumière (10, 18h30), que também exemplificam esse fascínio inicial com o movimento.
Suplemento de verdade
O movimento é uma qualidade que não se encontra, por motivos alheios ao cineasta, em O Prado de Bejine (Junho), de Sergei Eisenstein: “A sua inclusão é muito interessante, porque dele restaram apenas imagens fotográficas. No fundo, o filme é a sua própria reconstituição a partir de fotogramas, de imagens fixas. Sobreviveram à destruição da maior parte do material filmado e permitem perceber ou intuir o que poderia ter sido, sem obviamente o restituir na sua totalidade”.
Esta é a história de muitos filmes dados como perdidos e posteriormente restaurados que são reconstituídos a partir de imagens fotográficas, como se a fotografia ressuscitasse, ainda que não totalmente, o filme. “Na mesma sessão da projecção de O Prado de Bejine vamos mostrar uma série de filmes da Paper Print Collection da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Deles existem apenas contactos da sucessão de fotogramas que os constituíam impressos em papel fotográfico que, refotografados ou digitalizados, permitiram regressar aos filmes. E o mais curioso, é que essas imagens fotográficas foram guardadas apenas para registo de autor, para efeitos de copyright enquanto os filmes desapareceram”.
Na sua relação com o real, por meio do fotograma, a fotografia pode ser entendida como um suplemento de verdade. “Ao ser convocada para o cinema, muito frequentemente, a fotografia surge associada a essa ideia. É o que acontece na relação do protagonista de Blow Up com a imagem fotográfica, mas também num filme como 48 (Junho), da Susana de Sousa Dias em que se investiga a ideia da verdade no âmbito do arquivo e da história”. Acrescente-se que a crítica dirigida à própria fotografia não está ausente do ciclo. A cisão ou a descontinuidade entre a descrição e a materialidade física das imagens é explorada em Les Photos d’Alix (21, 18h30; 24, 19h), Jean Eustache, e o próprio processo de construção da fotogafia é abordado em Letter to Jane, do Grupo Dziga Vertov (22, 19h) ou nos filmes de Harun Farocki (Junho). Uma distância é imposta entre as imagens e os espectadores para que estes possam descobrir e questionar os mecanismos, os sentidos, as estruturas escondidas na fotografia. O cinema não se faz apenas com a fotografia, põe-se a pensar a fotografia. Uma outra experiência é solicitada pelo filme Screen Tests, de Andy Warhol. “Raramente é visto em projecção e tem, pelo lado do retrato, uma ligação com a fotografia”, comenta Joana Ascensão. “São planos fixos, não são imagens fotográficas, mas pela sua duração, pelo género que evocam, remetem para a fotografia”. Remetem também para um período da história da arte americana do século XX (um dos tópicos a que o ciclo inevitavelmente alude, com a cidade de Nova Iorque no horizonte), como os certos filmes observam a história política do mundo. E aí revela-se um outro tipo de presença do real. “Sim o da política. Pela primeira vamos mostrar, com a colaboração da Cinemateca Francesa, o Ciné-tracts [28, 21h30; 29, 18h30]., uma obra colectiva sobre o Maio de 68. Os filmes são feitos por cineastas como o Jean-Luc Godard e o Chris Marker, mas não assinados individualmente, e constituídos essencialmente por fotografias, com intertítulos, do Maio de 68”. Epílogo possível, nunca definitivo, para este ciclo: o cinema trazia e traz da rua, para vermos, na sala, as fotografias de um passado, com os seus instantes, fluxos interrompidos, vestígios em movimento de uma realidade.