Nem padre, nem guarda, nem museu
A descolonização dos museus é um passo fundamental para a criação de sociedades verdadeiramente democráticas.
O museu, tal como o conhecemos hoje, nasceu no século XIX como uma das instituições fundadoras da modernidade ocidental. Tal como a fábrica (a partir da qual se definiu o que era produção útil e se regulou o trabalho na ordem capitalista) ou o hospital (onde se definiram os limites da normalidade biológica), o museu foi criado para disciplinar o mundo e criar um novo tipo de sociedade. A sua função social não foi menos importante do que a da fábrica, do hospital, ou de outras instituições. No novo quadro do liberalismo, a legitimidade política das elites teve de ser reinventada e foi assim que emergiu a noção de que às fronteiras políticas de um Estado deviam corresponder um povo, uma língua, e uma história. Esta unidade, vulgarmente conhecida por Estado-nação, teve contornos muito toscos até ao final do século XIX e o museu teve o papel crucial de a tornar numa realidade palpável. Homens como José Leite de Vasconcelos, o fundador da instituição hoje conhecida por Museu Nacional de Arqueologia, assumiram a missão de materializar uma ideia de nação. Como os minhotos e os alentejanos tinham pouco em comum, foi preciso construir todo um universo material que os unisse e os integrasse no Estado português como uma inevitabilidade histórica. Assim, a escrita de uma etnografia ou o arranjo de artefactos arqueológicos numa vitrina corresponderam ao nascimento da própria nação.
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O museu, tal como o conhecemos hoje, nasceu no século XIX como uma das instituições fundadoras da modernidade ocidental. Tal como a fábrica (a partir da qual se definiu o que era produção útil e se regulou o trabalho na ordem capitalista) ou o hospital (onde se definiram os limites da normalidade biológica), o museu foi criado para disciplinar o mundo e criar um novo tipo de sociedade. A sua função social não foi menos importante do que a da fábrica, do hospital, ou de outras instituições. No novo quadro do liberalismo, a legitimidade política das elites teve de ser reinventada e foi assim que emergiu a noção de que às fronteiras políticas de um Estado deviam corresponder um povo, uma língua, e uma história. Esta unidade, vulgarmente conhecida por Estado-nação, teve contornos muito toscos até ao final do século XIX e o museu teve o papel crucial de a tornar numa realidade palpável. Homens como José Leite de Vasconcelos, o fundador da instituição hoje conhecida por Museu Nacional de Arqueologia, assumiram a missão de materializar uma ideia de nação. Como os minhotos e os alentejanos tinham pouco em comum, foi preciso construir todo um universo material que os unisse e os integrasse no Estado português como uma inevitabilidade histórica. Assim, a escrita de uma etnografia ou o arranjo de artefactos arqueológicos numa vitrina corresponderam ao nascimento da própria nação.
Claro que as fronteiras da monografia e da vitrina implicaram exclusões e silêncios. Quando as elites portuguesas precisaram de legitimar um império, numa época em que os impérios iam desaparecendo dos mapas, alargaram esse jogo de inclusões e exclusões para definirem uma nova narrativa. No contexto dos anos de 1950 e seguintes, essa narrativa foi reformulada através do que se convencionou chamar de “luso-tropicalismo”, isto é, um conjunto de ideias que explicava que os portugueses estavam historicamente fadados a fazer-se ao mar (para os tais “descobrimentos”), a miscigenar-se e a criar uma civilização universal. Isto deve ter soado muito conveniente a um governo que empurrou milhares de jovens para a morte em África, e que procurava justificar o extrativismo económico mais brutal nas colónias.
Estas narrativas foram decididamente postas em causa, tanto em termos políticos como académicos. Desde os anos de 1970 que correram rios de tinta, dentro e fora de Portugal, esclarecendo que as narrativas históricas são produtos do presente e que os museus são as instituições que lhes dão corpo. Os movimentos sociais das últimas décadas entenderam isso muito bem, e foi por isso que nos últimos anos têm vindo a pressionar museus para abandonarem as matrizes nacionalistas e imperiais que estão por detrás da sua criação. A descolonização dos museus é um passo fundamental para a criação de sociedades verdadeiramente democráticas, que questionem criticamente os jogos de inclusões e exclusões (económicas, classistas, raciais, entre outras) a que estamos sujeitos nos dias que correm.
É por tudo isto que tenho ficado boquiaberto com várias intervenções feitas nas últimas semanas na imprensa portuguesa por antigos diretores de museus nacionais propondo a criação de mais um museu, quer “da Interculturalidade de Origem Portuguesa” (Matilde Sousa Franco no Observador, 24/3/2018), quer da “Viagem” (Luís Raposo no PÚBLICO, 18/4/2018). A estes antigos responsáveis museológicos juntaram-se vozes várias que, na imprensa ou redes sociais, justificam idêntica necessidade de museus nacionais para a “História Nacional”, para os “Descobrimentos”, ou para outros conceitos pesados como o chumbo.
Apesar de divergências várias, estes autores têm em comum o desejo de materializar num prédio a velha mitologia luso-tropicalista em que os portugueses surgem como agentes excecionais da História (com agá grande) destinados a transformar o mundo. A narrativa da miscigenação, da missão civilizadora e do colonizador benéfico, veiculada pelo “Estado Novo”, recicla-se assim na imagem auto-complacente dos portugueses como povo aberto às trocas culturais, ao acolhimento e à compreensão dos outros.
Que estas propostas sejam levadas a sério em 2018 revela, desde logo, o sucesso da empreitada ideológica levada a cabo pelos engenheiros sociais da ditadura. Mas estas propostas também mostram, e isso é mais preocupante, um desconforto sistémico com a falta de uma narrativa oficial sobre a nação, ou a falta de um espaço em que ela seja contida, organizada e controlada. Não é um acaso que sejam antigos diretores de museus nacionais a avançar com algumas destas propostas.
Numa sociedade que está a passar por transformações sociológicas profundas (a elevada escolaridade da população, a intensa mobilidade académica internacional, a crescente visibilidade de grupos sociais historicamente marginalizados ou a consolidação de vagas migratórias recentes), devíamos aproveitar para questionar as narrativas tradicionais baseadas no conceito de Estado-nação e na obsessão pelo “Nacional” enquanto sujeito. No mínimo, a nossa responsabilidade é a de pensar num museu que não tenha a pretensão de ser um contentor da realidade, como o viam José Leite de Vasconcelos e outros egrégios narradores da “portugalidade”. Por outras palavras, o nosso dever é que tenhamos um pouco mais de imaginação.
Durante o “Estado Novo”, as gentes da terra do meu pai, uma vila do baixo Alentejo, gabavam-se de não terem nem padre residente nem posto da Guarda Nacional Republicana. Eu nasci em democracia e estou longe de ter vivenciado as consequências da articulação entre duas das instituições que sustentavam a ditadura. As coisas, entretanto, mudaram. No entanto, há uma lição fundamental a aprender no orgulho daqueles alentejanos: as instituições modernas, sobretudo as que seguem uma obsessão identitária, são criadas com a função de disciplinar a sociedade e de estabelecer os limites da intervenção política. Enquanto não tivermos as condições materiais para pensar em conteúdos transformadores, que rompam os constrangimentos intelectuais impostos pela ditadura e nos permitam pensar no futuro, o melhor mesmo é que não exista nenhum novo museu.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico