A violência frívola
Romance ambicioso que retrata os efeitos, no tecido social do País Basco, de mais de três décadas de terrorismo.
Em Pátria o escritor basco Fernando Aramburu (n. 1959) entra no mundo dos terroristas etarras e no das suas vítimas. Ao longo de mais de setecentas páginas, o leitor percorre as tensões sociais e políticas de um conflito que durante as últimas décadas marcou gerações de espanhóis. Mais do que uma história ficcionada de duas famílias em lados opostos de uma disputa, Pátria ambiciona ser um retrato da vida no País Basco — um retrato social que funcionará para a sociedade basca como um espelho, e que será, certamente, incómodo para muitos.
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Em Pátria o escritor basco Fernando Aramburu (n. 1959) entra no mundo dos terroristas etarras e no das suas vítimas. Ao longo de mais de setecentas páginas, o leitor percorre as tensões sociais e políticas de um conflito que durante as últimas décadas marcou gerações de espanhóis. Mais do que uma história ficcionada de duas famílias em lados opostos de uma disputa, Pátria ambiciona ser um retrato da vida no País Basco — um retrato social que funcionará para a sociedade basca como um espelho, e que será, certamente, incómodo para muitos.
Partindo da história de duas mulheres que foram amigas (“aquela amiga da terra de que mais vale não se lembrar”, diz alguém) até ao dia em que o marido de uma foi assassinado, por um encapuzado, com quatro tiros num passeio da vila, Fernando Aramburu começa a tecer uma teia que se vai estendendo a partir desses dois núcleos familiares: o de Bittori, a viúva, e o de Miren, mãe de Joxe Mari, terrorista preso de quem Bittori desconfia ter sido o assassino do marido.
A narrativa tem início no dia em que a ETA anuncia o abandono da luta armada (Outubro de 2011). Bittori vai ao cemitério para, junto à sepultura do marido, contar que decidira sair de San Sebastián e voltar à vila, à casa onde ambos viveram. O regresso de Bittori à terra vai alterar o falso ambiente de tranquilidade que por lá se vive, e sobretudo perturbar Miren, amiga íntima em tempos idos (uma mulher simpatizante da ETA, mas que chorou a morte de Franco). Passado tanto tempo, e agora que o grupo terrorista anunciou depor as armas, talvez fosse já altura de Bittori começar a esquecer o passado. “Interrogou-se se depois de tantos anos não deveria ir pensando em esquecer. Esquecer? O que é isso?”
A história central irradia à medida que o leitor vai conhecendo as vidas dos filhos destas duas mulheres. A narrativa não segue uma ordem cronológica; mais do que o tempo, é a aleatoriedade da memória o motor do contar das acções. Aos poucos, vão aparecendo as feridas — muitas delas insuspeitas para quem não conheceu os efeitos deste conflito — deixadas por dezenas de anos (centenas de mortes, entre as quais 24 crianças) num tecido social que se foi moldando em redor do medo e do silêncio. Aramburu, como um anatomista experimentado, vai apontando com o dedo as várias chagas no mapa de um corpo agonizante; depois abre-as e mostra os efeitos deixados pelo tempo nos tecidos internos: os receios de ter opinião, as zangas entre amigos, as fracturas dentro das famílias, a “ditadura social”, as vinganças pessoais usando falsamente o conflito para se justificarem, as torturas nas esquadras da Polícia, a juventude menos instruída que resolve o tédio cedendo ao aliciamento feito pela ETA, a dificuldade do esquecimento e do perdão, e sobretudo a frivolidade da violência (a que também parte da igreja católica basca cede — no romance, na figura do padre dom Serápio). Desta maneira vai também o leitor sabendo de particularidades do conflito, como a do medo com que as famílias das vítimas tinham de aprender a lidar mesmo depois de enterrados os mortos, ou melhor, mesmo depois de ‘escondidos’ os mortos, aqueles que foram alvos escolhidos nos atentados e cujo nome era pintado semanas ou dias antes nas paredes: “[aconselharam-na] a abster-se de pôr referências [a data do atentado, por exemplo] na lápide, emblemas ou sinais que identificassem o Txato como vítima da ETA. Assim evitaria problemas”, ou ainda, “se o enterras na povoação irão atacar a sepultura, não seria a primeira vez que acontece uma coisa parecida.”
Nesta espécie de epopeia do terrorismo basco, Fernando Aramburu deixa que as personagens se tornem estereotipadas, com reacções esquemáticas, sem contradições nem surpresas — o que talvez passasse por aceitável se a função de cada uma fosse representar no romance um “tipo’”social, o que não é o caso — e com isto a história perde a densidade que parece querer anunciar no começo. Em termos de efeitos literários, esta ausência de complexidade narrativa é em parte compensada pelo modo de narrar: a voz do narrador é bastas vezes interrompida pelas vozes soltas das personagens, como se elas quisessem completar o que o narrador diz, ou como se este não quisesse contar tudo e as esperasse; então elas atropelam-no e falam do que sentem ou sentiram, das suas razões. Como aqui, por exemplo, em que o narrador conta da actividade de um terrorista, e ele surge também a completar a fala: “Foram simples biscates: dois rebentamentos, um assalto. Aquilo do bar, pelo contrário, tem-no muito presente. Não pelo tipo. O tipo tanto lhe fazia. A mim mandam-me executar um fulano e eu executo seja quem for. A sua missão não era pensar nem sentir, mas sim cumprir ordens.”
Não sendo um romance ambicioso literariamente (talvez tenha desistido de o ser demasiado cedo), Pátria mostra a grande ambição de ser o “romance definitivo” de um certo período da História basca.