Voando sobre um ninho de corvos
O que deveria ser um debate intelectual construtivo e sereno é reduzido, afinal, a um destilar de bílis e paixões.
"Dois homens negros, escondidos na vegetação, observam os portugueses a desembarcar na praia. 'Bolas! – diz um deles para o outro – fomos descobertos'." Esta piada contava-se nos meus tempos de estudante (no mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa da FCSH, nem mais), pois já nessa altura os conceitos e chavões para descrever aquilo – “descobrimentos”, “ultramarinos”, “coloniais”, “império” – queimavam línguas e neurónios. Três décadas depois, o cenário não mudou muito. O episódio mais recente envolve a intenção da CML de erguer na cidade um “Museu das Descobertas” e uma carta aberta de mais de uma centena de historiadores e cientistas sociais a discordar frontalmente dessa designação. Serão pessoas de opinião credível e parecer autorizado? A ver pelas reações, parece que não. Uma cascata de indignação percorreu as redes sociais, mimando os subscritores da carta com todo o tipo de epítetos, de “sucata ignorante e antinacional” a “esterco” promotor do “marxismo cultural”. Luís Paixão Martins, Henrique Monteiro ou António Nogueira Leite são alguns dos nomes envolvidos na maré. Vítor Rainho, diretor do jornal i, denunciou os “novos inquisidores” da “onda de histerismo do politicamente correto”, “meninos armados em heróis dos direitos humanos” que querem “reescrever a história”. Finalmente, o deputado Sérgio Sousa Pinto, em artigo no Expresso, falou em “tara desconstrutiva” e numa “compreensão enviesada da História”.
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"Dois homens negros, escondidos na vegetação, observam os portugueses a desembarcar na praia. 'Bolas! – diz um deles para o outro – fomos descobertos'." Esta piada contava-se nos meus tempos de estudante (no mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa da FCSH, nem mais), pois já nessa altura os conceitos e chavões para descrever aquilo – “descobrimentos”, “ultramarinos”, “coloniais”, “império” – queimavam línguas e neurónios. Três décadas depois, o cenário não mudou muito. O episódio mais recente envolve a intenção da CML de erguer na cidade um “Museu das Descobertas” e uma carta aberta de mais de uma centena de historiadores e cientistas sociais a discordar frontalmente dessa designação. Serão pessoas de opinião credível e parecer autorizado? A ver pelas reações, parece que não. Uma cascata de indignação percorreu as redes sociais, mimando os subscritores da carta com todo o tipo de epítetos, de “sucata ignorante e antinacional” a “esterco” promotor do “marxismo cultural”. Luís Paixão Martins, Henrique Monteiro ou António Nogueira Leite são alguns dos nomes envolvidos na maré. Vítor Rainho, diretor do jornal i, denunciou os “novos inquisidores” da “onda de histerismo do politicamente correto”, “meninos armados em heróis dos direitos humanos” que querem “reescrever a história”. Finalmente, o deputado Sérgio Sousa Pinto, em artigo no Expresso, falou em “tara desconstrutiva” e numa “compreensão enviesada da História”.
Há um indiscutível aroma lunático em tudo isto. Primeiro, porque é incompreensível a ligeireza e o desprezo que continuam a merecer historiadores e especialistas das Ciências Sociais e Humanas; depois, porque o que deveria ser um debate intelectual construtivo e sereno é reduzido, afinal, a um destilar de bílis e paixões; finalmente, porque o nosso ego nacional, aparentemente sólido e robusto, revela-se, uma vez mais, um véu frágil e inseguro. Não se encontra uma opinião fundamentada a contestar a carta, só achismos, mitos, calor e ignorância. O texto de Sérgio Sousa Pinto, ao apontar o Bornéu como exemplo – anedótico, como se de uma ilha isolada e selvagem se tratasse – do que os portugueses “descobriram”, é particularmente sintomático. Nunca leu a Suma Oriental do Tomé Pires para saber o que era o Bornéu quando os portugueses lá chegaram? Não sabe que o pioneirismo de navegação dos portugueses cessou na costa oriental africana e que a partir daí (pró Bornéu e mais além) foi, sobretudo, um trabalho de incorporação de conhecimentos e práticas dos asiáticos? Do presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas esperava-se mais conhecimento e menos preconceito. Em tempos, existia no bar da FLUL um letreiro que dizia: “Não apaguem as beatas nas chávenas que nós não servimos as bicas nos cinzeiros.”
Na verdade, a carta em causa é um documento sensato e fundamentado, subscrito por um leque abrangente de académicos de universidades e quadrantes diversos, nacionais e internacionais, que faz eco das reticências que o termo “Descobrimentos” suscita – há muito – entre historiadores e cientistas sociais. É uma espécie de ground zero, de mínimo denominador comum, de ponto de partida sobre o qual estamos todos razoavelmente de acordo. Todos, evidentemente, os historiadores e académicos, mas que importa isso a quem sente ferver nas veias, nas noites de lua cheia, o sangue de gamas e cabrais e pensa que é tudo uma conspiração de quem “nos” quer roubar o passado e a memória? A exclusão do nome “das Descobertas” no futuro museu de Lisboa é um passo, ainda muito inicial e precoce. E a ver pelas reações alucinadas na fase do “como não se deve chamar”, não se anuncia pacífica a etapa do “como se vai chamar” e, muito menos, a do “o que terá lá dentro”. Para recomendar e atestar escolhas e opções, bastaria uma pequena equipa de biólogos, químicos, astrónomos, se fosse outro o campo. Como é o da História, a tal dos “descobrimentos” “ultramarinos”, “coloniais” ou do “império”, valerá a pena sequer obter uma validação científica?