Foram “apagados” ou “destruídos” documentos sobre incêndio de Pedrógão Grande
Auditoria interna da Protecção Civil, que o Governo nunca revelou, aponta falhas ao combate inicial e revela que não existem provas documentais. Primeiro posto de comando era uma mesa com quatro cadeiras.
Depois de dois relatórios ao incêndio de Pedrógão Grande devidamente publicitados no site do Governo, faltava conhecer em detalhe a auditoria interna que a própria Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) fez ao desempenho dos seus agentes naqueles dias de Junho - um documento que o executivo tem mantido na gaveta. O relatório da auditoria feita pela Direcção Nacional de Auditoria e Fiscalização da ANPC, a que o PÚBLICO teve acesso, aponta falhas graves na organizações inicial do combate ao incêndio e revela que os auditores se depararam com a inexistência de provas documentais sobre o trabalho de combate ao fogo.
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Depois de dois relatórios ao incêndio de Pedrógão Grande devidamente publicitados no site do Governo, faltava conhecer em detalhe a auditoria interna que a própria Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) fez ao desempenho dos seus agentes naqueles dias de Junho - um documento que o executivo tem mantido na gaveta. O relatório da auditoria feita pela Direcção Nacional de Auditoria e Fiscalização da ANPC, a que o PÚBLICO teve acesso, aponta falhas graves na organizações inicial do combate ao incêndio e revela que os auditores se depararam com a inexistência de provas documentais sobre o trabalho de combate ao fogo.
Os auditores internos queixam-se de que, ao longo de todo o processo, - que decorreu até 19 de Outubro do ano passado - se depararam com “limitações na obtenção de elementos de prova”, informação que “pode tornar-se vital” para a avaliação posterior, nomeadamente ao nível da responsabilidade disciplinar e criminal.
Em causa estão todos todos os documentos que são produzidos no posto de comando de um incêndio, desde os planos de situação aos planos estratégicos de ataque, e todas as informações das três células de qualquer posto de comando (logística, planeamento e operações). “Não foi possível aceder a um único SITAC [quadro de situação táctica], a um único Quadro de Informação de Células, ou a um PEA [Plano Estratégico de Acção]”, lê-se no documento.
Mais. “Todos estes documentos haviam sido apagados dos quadros das VCOC e VPCC [viaturas de comunicação], ou destruídos os documentos em papel que os suportaram”.
Esta é uma situação que decorre, dizem alguns comandantes ao PÚBLICO, da falta de meios para trabalho num posto de comando, uma vez que estes planos são desenhados e redesenhados conforme o evoluir da situação. Acrescentam os auditores que este caso mostra a necessidade de investimento “no plano informático” que guarde informação, o que não acontece actualmente. No terreno, as situações tácticas (SITAC) vão sendo desenhadas num plástico ou acrílico colocado por cima de uma carta militar, e quando se desenha a mais recente, a anterior é apagada. Alguns comandantes vão guardando fotografias desse trabalho, mas no incêndio de Pedrógão, de acordo com os auditores, isso não aconteceu.
Já os restantes planos e informações vão circulando entre os responsáveis, mas de acordo com o relatório da DNAF, que foi revelado em parte pela RTP em Novembro, os documentos em papel que os suportavam terão sido destruídos. Este é apenas um dos detalhes que a auditoria revela e que mostram que há vários pontos amadores no combate a incêndios em Portugal.
O próprio relatório foca um pormenor: o primeiro posto de comando do incêndio foi uma mesa, com quatro cadeiras e um computador pessoal emprestado por um dos bombeiros “com o Google Earth aberto”.
Desorganização inicial e atrasos
O relatório da DNAF não tem dúvidas de que houve uma total desorganização no combate inicial ao incêndio, que esteve sob responsabilidade do comandante dos bombeiros de Pedrógão Grande, Augusto Arnaut. De acordo com os auditores, “a evolução e desenvolvimento da organização do sistema eram deficientes”.
Nas primeiras três horas do incêndio, é descrito o caos. Houve demora na chegada de veículos de comunicação e na sua localização, porque não havia rede no local inicial, houve passagens de trabalho por via informal e são notadas discrepâncias nos relatos sobre o momento em que foram distribuídas as responsabilidades pelas células de combate e sobre quando foi feita a sectorização do teatro de operações. São pedidos meios e é registado que o incêndio lavra com “intensidade”. Uma tarefa maior do que o homem, que a DNAF aponta como protagonista, mas sem meios, que eram pedidos e não chegavam.
Neste ponto, os auditores notam ainda uma “ausência” do comandante de operações (COS), Augusto Arnaut, que voltaria a protagonizar mais uma “ausência inesperada” mais tarde.
Por esta altura, ao final da tarde, as dificuldades de comunicação são evidentes em Escalos Fundeiros, local do primeiro posto de comando, e os responsáveis tentam nova localização. As andanças de um lado para o outro, enquanto o incêndio lavra, são apontadas como falhas graves: “Este atraso revela-se fatal, pois decorrem quatro horas e não existem dois instrumentos fundamentais actualizados no posto de comando: uma previsão meteorológica específica para o local (o que só acontece às 19h44) e um SITAC com uma previsão que antecipe cenários desfavoráveis, a uma maior distância de tempo e com identificação de medidas a tomar com a devida antecedência”, defende a DNAF.
Esta situação, que configura na óptica interna da ANPC um atraso na aplicação das fases do Sistema de Gestão de Operações (SGO, as regras que definem as operações a seguir), condicionou o trabalho futuro dos outros comandantes, que acabou por ser “reactivo” e andar sempre a atrás do prejuízo.
Com o evoluir do fogo, e com a mudança do comando de operações para o 2º comandante distrital de Leiria, Mário Cerol, que apenas geriu o combate ao incêndio por duas horas, os auditores continuam a notar falhas, muito por causa do agravamento do incêndio que começava a ameaçar aldeias e da falta de planeamento. “Perante este atraso irrecuperável, com problemas de comunicações, sem planeamento anterior atempado e sem um conhecimento do perímetro do incêndio, a própria gestão reactiva é prejudicada. Acode-se onde pedem e onde os meios chegam. O incêndio deixa de ser combatido”, descrevem.
Estes dois homens, Augusto Arnaut e Mário Cerol, são os únicos dois arguidos conhecidos do processo judicial que decorre há onze meses e que se tem deparado com dificuldades, dada a complexidade do que aconteceu e do elevado número de mortes.
Já pelas 22 horas, com o segundo comandante nacional, Albino Tavares, ao comando, a DNAF nota melhorias na organização, como na estratégia a seguir, apesar de referir que este se concentrou no socorro mais do que no combate. Conhecem-se, então, as primeiras vítimas mortais, agravando o caos, e chegam os primeiros responsáveis políticos, obrigando o comandante a fazer 11 briefings em poucas horas, desviando-o de outras tarefas que deveriam estar a ser feitas, de acordo com a DNAF. “É neste período que começam a chegar as notícias da existência de vítimas mortais. A acção do novo COS centra-se de novo nestas necessidades urgentes, dá-lhes resposta e põe-lhes ênfase, solicitando mais meios (...). No entanto, o incêndio não possui uma estratégia definida para o seu combate”, lê-se. O planeamento estava a ser feito, mas não havia como aplicá-lo: “Houve incapacidade de implementar a estratégia que era proposta, dado o elevado número de pedidos de socorro”, conta um dos intervenientes.
A auditoria, dura para o funcionamento da Protecção Civil, foi entregue ao MAI, ao Ministério Público e à Inspecção-Geral da Administração Interna. O PÚBLICO quis saber se daqui resultou algum processo disciplinar ou o acolhimento de alguma proposta, mas o MAI continua em silêncio.